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A viagem do elefante
Romance, 2008



Edição brasileira de A viagem do elefante
Capa de Hélio Almeira sobre Carnaval ou Cosmogonie (1959)
gravura em metal, goiva, de Arthur Luzi Piza, 59,6x46,5cm.
Coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo
Reprodução de Rômulo Fialdini






























Não é todo dia que aparece um elefante em nossa vida, muito menos chamado Salomão. Pois é esse formoso e meigo paquiderme, nascido em Goa, transportado pelos mares a Portugal no século XVI, o herói da viagem que aqui se conta. Foi numa conversa de alcova, nos idos de 1551, que dom João III e sua mulher, Catarina d'Áustria, selaram o destino do animal. Ele despertara grande curiosidade ao desembarcar em Lisboa, mas agora vegetava, sujo e malcheiroso, num cercado para os lados de Belém, junto com seu cornaca indiano. Assim é a lei da vida, nos diz Saramago: triunfo e esquecimento. Suas altezas dão novo alento a Salomão quando resolvem oferecê-lo de presente de casamento ao arquiduque austríaco Maximiliano II, recém-casado com a filha do imperador Carlos V.

E lá se vai a caravana. Meses a fio, um punhado de soldados, cavalos e bois e um elefante de três metros de altura e quatro toneladas de peso, percorrem os caminhos de Portugal, Espanha e Itália, enfrentando intempéries, perigos reais e imaginários, vivendo aventuras ao lado de uma profusão de atores que surgem e logo desaparecem do palco do relato. Depois de uma heróica travessia dos Alpes sob tempestade de neve, que Salomão encara com a galhardia de seus ilustres antepassados liderados por Aníbal, o general cartaginês, a viagem chega ao fim no dia 6 de janeiro de 1552, em Viena.

Com sua finíssima ironia e muito humor, sua prosa que destila poesia, José Saramago reconstrói essa epopéia de fundo histórico e dela se vale para fazer considerações sobre a natureza humana e, também elefantina. Impelido a cruzar meia Europa por conta dos caprichos de um rei e de um arquiduque, Salomão não decepcionou as cabeças coroadas. Prova de que, remata o autor, sempre se chega aonde se tem de chegar.


[Orelha da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras, 2008]

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A viagem do elefante, de José Saramago


por Viegas Fernandes da Costa


Há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Há quem diga, claro, ser isto pura bobagem. Bobagem ou verdade, no final de 2007 o escritor português José Saramago enfrentou problemas respiratórios gravíssimos que por pouco não o levaram a óbito. Recuperado, tratou de concluir seu mais novo livro, “A Viagem do Elefante”, uma novela teimosamente referenciada de conto pelo próprio autor.

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Há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Há quem diga, claro, ser isto pura bobagem. Bobagem ou verdade, no final de 2007 o escritor português José Saramago (Prêmio Nobel de Literatura em 1998) enfrentou problemas respiratórios gravíssimos que por pouco não o levaram a óbito. Recuperado, tratou de concluir seu mais novo livro, “A Viagem do Elefante” (Ed. Companhia das Letras, 2008), uma novela teimosamente referenciada de conto pelo próprio autor.

“A Viagem do Elefante” ambienta-se em meados do século XVI, e conta a história do elefante Solimão (ou Salomão, como é chamado depois de passar à propriedade austríaca) e seu cornaca Subhro (ou Fritz, cujo nome também é modificado, pois, enquanto tratador e guia, acompanha o elefante e os desígnios aos quais este é submetido). Solimão era propriedade do império português, e vivia um tanto quanto esquecido em Lisboa, sob os cuidados de Subhro. De pouca ou nenhuma serventia aos interesses do rei D. João III, o elefante é presenteado ao arquiduque austríaco Maximiliano II, recém casado com a filha do imperador Carlos V, que aceita o presente e imediatamente procede a mudança dos nomes de Solimão e Subhro para Salomão e Fritz. A partir de então, o narrador passará a contar a história da longa viagem empreendida por Salomão e Fritz, primeiramente de Portugal a Espanha, onde se detinha a comitiva de Maximiliano II, e de Espanha a Áustria, incluindo-se aí uma perigosa viagem marítima pelo Mediterrâneo e uma quase suicida travessia dos Alpes.

Para quem se acostumara à densidade de livros como “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Memorial do Convento” entre outros, este “A Viagem do Elefante” aparenta uma simplicidade e uma linearidade que parecem destoar da obra do autor; entretanto, é nas tergiversações dos personagens e do narrador que reside a maior qualidade da obra. A história serve apenas como pano de fundo para que José Saramago exercite seu mais fino humor e sua mordaz ironia à burocracia de Estado e à corrupção intrínseca dos indivíduos. Assim, não foi casual a escolha de um elefante como personagem central do livro. É Solimão (ou Salomão) que move a burocracia de um Estado inoperante, muito mais preocupado com sua perpetuação e imagem, do que com sua eficiência junto às necessidades de seu povo, e é em torno e em função dele que se destacará toda uma comitiva e para qual se contratarão funcionários que possam suprir suas necessidades particulares e tornar possível e segura sua viagem. Solimão é, desta feita, o próprio Estado, cuja ineficácia burocrática José Saramago discutiu em livros como “Todos os Nomes” e “Ensaio sobre a Lucidez”, dentre outros. Subhro (ou Fritz), o cornaca, por sua vez, constitui-se como personagem complexo: indiano de origem, emigrou para Portugal acompanhando Solimão, a quem trata, treina e guia. Apesar de servir a seu soberano, seja este o rei português ou o arquiduque austríaco, é dado a arroubos de autonomia, e chega a contestar e ironizar seus superiores hierárquicos. Sabendo-se fundamental aos interesses do seu governo, considerando ser o único a conhecer as manhas e artimanhas de Solimão, Subhro emite suas opiniões próprias e, em nome do bem-estar do elefante (e, consecutivamente, dos interesses de Estado), chega a impor condições para a viagem. Entretanto, como todo ser humano, deixa-se levar também por seus interesses próprios e, sempre que pode, usa do Estado (no caso, Solimão) para obter lucros e benefícios pessoais, como no episódio em que passa a vender pelos do animal a uma população crédula depois de ter usado o paquiderme para forjar um milagre – uma clara referência ao momento em que a história é ambientada, quando na Europa eclodiram os movimentos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma Católica.

Como já dissemos aqui, há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Fato é que em “A Viagem do Elefante” encontramos um Saramago mais leve, consciente da importância da sua literatura, porém ciente, também, de que talvez já tenha dito o que havia para se dizer, e que a esta altura de sua vida e carreira importa mesmo o prazer de escrever uma boa história.

Por isso, talvez, a impressão de um Saramago sorridente que nos acomete quando fechamos o livro.


[Texto publicado em março de 2009, no site Sarau Eletrônico]