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In nomine Dei
Teatro, 1993

Capa da edição brasileira de In nomine Dei
De Hélio Almeida a partir de Arthur Luiz Piza



























Quem admira as riquezas do estilo de José Saramago - sua encantada lucidez, sua violência descritiva - talvez imagine que, numa peça de teatro, algo disso se perca. As falas dos personagens exigem mais concisão; e como esperar opulências de linguagens quando os fatos e os conflitos, brutais, precipitam-se no palco?

In nomine Dei, peça de José Saramago, responde magistralmente à dúvida. Seus leitores encontram, aqui, o mesmo grande escritor de O evangelho segundo Jesus Cristo: a mesma força, a mesma precisão, a mesma angústia. O que muda é a forma. Não temos a narração extrema e delicada, mas sim um autor trágico, que se retrai apaixonadamente, por assim dizer, face à aquilo que mostra.

A peça conta o fracasso de uma rebelião protestante na Alemanha do século XVI. Há, de início, nobreza e sede de justiça nas atitudes dos personagens. Mas logo se desvenda a brutalidade, o sem-sentido do que fazem. A fé vitima os mais simples, a credulidade dilacera os homens, a esperança mata, e a utopia igualitária serve de pretexto para a dominação.

Saramago escreve, sem dúvida, uma peça contra o fanatismo, as ilusões fundamentais e os heroísmos estúpidos da religião. Mas seria pouco dizer que encena, simplesmente, os horrores a que conduziu tanta fé. Não se trata apenas de um manifesto - atualíssimo, aliás -; mais do que isso, o texto de Saramago desencadeia uma ação cruel, rica de detalhes psicológicos e surpresas perturbadoras.

A história humana como espetáculo de violência, como exercício absurdo do poder, como cegueira dos inocentes e dos canalhas: talvez este seja o cerne das preocupações de Saramago. Ao mesmo tempo cheia de belezas e de horrores, a obra deste socialista convicto se move pelo desencanto.

In nomine Dei dá uma mostra espantosa da arte de Saramago como escritor, e de sua revolta, de suas decepções como ser humano. Sente-se aqui a desrazão de um mundo sem Deus, onde o demônio parece espreitar por toda a parte. Mas na peça vibra, acima de tudo, um grande amor pelos homens e pela vida: frágil vida, vitimada e simples, oscilando entre as esperanças e os crimes.


[Marcelo Coelho. Orelha da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras, 1993]