José Rodrigues Miguéis/José Saramago - Correspondência (1959-1971)
Correspondências, 2010
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(Carta de José Saramago a José Rodrigues Miguéis, 7 de Junho de 1960)
(Carta de José Rodrigues Miguéis a José Saramago, 13 de Outubro de 1971)
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José Rodrigues Miguéis/José Saramago: correspondência 1959-1971: Dois Grandes Escritores de Cara Inteira
Correspondências, 2010
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Edição portuguesa de José Rodrigues Miguéis/ José Saramago: correspondências publicada pela Editorial Caminho |
Quem sabe se a felicidade não seria exactamente esse pôr o homem a viver, no seu dia de hoje, a sua vida toda, integrar a memória total na parcela de homem que em cada dia somos? Ou talvez não fosse felicidade, talvez fosse um inferno - a irremediável saudade...
(Carta de José Saramago a José Rodrigues Miguéis, 7 de Junho de 1960)
Será por vaidade ou por ambição que nos escrevemos? (Para "ganhar a vida" - ou perdê-la - há bem melhores meios!)
Dizia o meu avô Sahil (de Góis), morto há quase 70 anos: "A ambição eleva o homem, a ambição o precipita": Não sei a que Bíblia ele foi buscar esta filosofia. - Porque escrevo eu, se quando me liberto disso, e ando por aí sem destino, me sinto aliviado, livre e quase feliz? - Sim, porque no meio de tantas tormentas, tenho dias de calma e de quase-felicidade, que clarifico com a minha própria substância, os pensamentos!
(Carta de José Rodrigues Miguéis a José Saramago, 13 de Outubro de 1971)
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Organizado por José Albino Pereira, o volume Correspondência 1959-1971 reúne 166 cartas trocadas entre José Saramago e José Rodrigues Miguéis, num período em que o primeiro era «director literário» da Estúdios Cor e o segundo o nome mais forte da editora, tanto em vendas como em prestígio – um ano antes, em 1958, ganhara o prémio Camilo Castelo Branco, com Léah e Outras Histórias. A separá-los, o Atlântico e uma razoável diferença de idades: ao tempo das primeiras cartas, Saramago tem 36 anos; Rodrigues Miguéis, 57.
A correspondência começa por ser quase exclusivamente sobre questões editoriais – relatórios das vendas, apuramento de direitos de autor, envio de cheques (ou reclamações quando estes se atrasavam), contratos, pormenores técnicos (as gralhas, a mancha de texto, o tipo de letra, o grafismo das capas, etc.) – mas depressa os formalismos se dissipam, dando lugar a declarações de amizade e afecto que nascem da admiração mútua.
Não faltam, porém, desentendimentos, equívocos, mal-entendidos e crispações. Se Miguéis vê em Saramago o «cordão umbilical» que o liga à pátria distante, nem sempre parece compreender que não é humanamente possível ao seu interlocutor, afundado em «trabalho até aos gorgomilos», responder com a rapidez e regularidade desejáveis. Exilado há mais de duas décadas em Nova Iorque, Miguéis ressente-se do afastamento físico. Abundam os queixumes sobre a solidão, sobre os silêncios prolongados que o deixam sem notícias de Portugal, ou ainda sobre os sucessivos problemas de saúde que lhe reduzem a qualidade de vida e limitam a produção literária. Por vezes, o tom é ríspido, «cortante», digno de uma prima-dona impaciente. A falta de atenção magoa-o e ele não se coíbe de invocar, como quem puxa da carta de trunfo, o estatuto de autor mais vendido: «Oxalá os meus amigos tivessem meia dúzia como eu.» Outras vezes, instala-se o desânimo e o autor de Escola do Paraíso chega a pôr em dúvida a qualidade das obras em curso (por exemplo, depois de ler Rayuela, de Cortázar, diz-se com «ganas de rasgar quanto tenho escrito»).
Com uma paciência de Job, Saramago dá-lhe alento e vai resolvendo como pode as questões burocráticas. É ele que dá a cara pela editora, é ele o «pára-raios», o homem dos «equilíbrios na corda bamba» – função da qual retira «mais aborrecimentos que alegrias», em troca de um «ordenado miserável». Em 1971, a insatisfação chega ao limite e bate com a porta (será substituído por Natália Correia, apalavrada pelos superiores hierárquicos nas suas costas), interrompendo a troca de cartas numa altura em que até se permitia fazer confidências sobre a sua instável vida amorosa.
Além de mostrar o funcionamento do mundo editorial português na década de 60, esta correspondência vale pelo retrato nítido que nos dá de dois artistas com trajectórias inversas: um escritor então no auge da fama (Miguéis) e entretanto esquecido; outro ainda por revelar (Saramago), mas já no interior da crisálida de que haveria de sair, uns anos mais tarde, o romancista destinado a ser o primeiro Nobel da língua portuguesa.
[José Mário Silva. O editor pára-raios. In: Revista Ler, n.93, setembro de 2010.]
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José Rodrigues Miguéis/José Saramago: correspondência 1959-1971: Dois Grandes Escritores de Cara Inteira
por Vamberto Freitas
Portugal é igual a Silêncio. José Rodrigues Miguéis em carta (1960) a José Saramago. A correspondência de dois grandes escritores constitui sempre um documento precioso por várias razões: os leitores mais conscientes dos principais protocolos da criação literária quase sempre se interessam por espreitar os autores na sua oficina diária, saber como e a quanto custo a prosa que lhe enche a alma (a do receptor) foi produzida; depois, enquanto vivíamos nós na paz tediosa do nosso próprio quotidiano, escapando aos nossos aborrecimentos através da leitura dessas e doutras obras, passamos a acompanhar um outro nesses mesmos dias que já se foram, com as suas obsessões e com o devir prático que marca a vida de cada um de nós. Esqueçamos o que nessas cartas tantas vezes seduz os outros, os voyeurs da miséria alheia, a má-língua de e acerca de colegas, as queixas e queixinhas que afligem profissionais ou os relacionamentos até entre os melhores espíritos. De tudo isso, no entanto, é feita a comunicação entre dois indivíduos, quer sejam meramente companheiros de estrada quer sejam amigos íntimos e fiéis. José Saramago está firmemente e vai permanecer durante pelo menos algumas gerações na nossa memória pelas razões que todos conhecem - quem não gosta de nem lê a sua obra, não poderá esquecer assim mesmo que ele é nosso primeiro Nobel da Literatura; José Rodrigues Miguéis foi um dos grandes senhores da nossa escrita, e só no país do Silêncio poderia estar já mais ou menos esquecido fora de um reduzido círculo de leitores conscientes da complexa problemática que sempre envolveu, e ensombrou, a nossa identidade nacional. Para se ler com bom proveito ou prazer as cartas de qualquer escritor, acredito, melhor seria ter conhecimento prévio da sua obra criativa. Nem sempre o homem parece o autor; nem sempre dele teremos o que esperamos ou queríamos ouvir. No caso das cartas de Miguéis a Saramago, chegam a ser irritantes certas e insistentes preocupações, um olhar sem desvios o próprio umbigo na correspondência de anos e anos. Há como que um mito em volta da figura de Miguéis, alimentado desde sempre por muitos críticos e apreciadores, tanto na América como em Portugal: apesar do autor de Gente da Terceira Classe, É Proibido Apontar e Um Homem Sorri à Morte - Com Meia Cara ter ido para lá voluntariamente, nunca foi um “imigrante”, mas sim um “exilado”, um “expatriado”, permanecendo obcecado pela sua então longínqua Lisboa, grande parte da sua ficção para cá virada, em revisitações maiores e menores. Se isso é verdade na sua melhor e mais conhecida obra de fôlego (Páscoa Feliz, A Escola do Paraíso e O Milagre Segundo Salomé, como exemplos indiscutíveis), também será verdade que Miguéis foi um dos nossos primeiros escritores, primeiro mesmo antes da chegada da geração que para lá emigrou em grandes números nos anos 60-70, e que hoje dá conta de si no que chamamos sem quaisquer complexos “literatura de imigração”, a olhar em sua volta e a transfigurar, especialmente nos seus contos, a nossa experiência de vida luso-americana. Por outro lado, sabe-se que Miguéis não vivia tão alheado da vida circundante (como poderia numa Nova Iorque em total ebulição social e cultural?), lendo ainda e traduzindo escritores tão fundamentais e americaníssimos como F. Scott Fitzgerald, Carson MacCullers e Erskine Caldwell. Um conto como “A Esquina do Vento”, só poderia ser escrito em língua portuguesa por um escritor de primeira, totalmente conhecedor ou intelectualmente imerso na americanidade profunda, que por ele seria “apreendida” a partir da sua chegada ao país em 1935. No entanto, da atribulada política que o país americano viveu naqueles anos (o Vietname era o tormento supremo), nada, das ruas em violento sobressalto contestatário, nada, de Nova Iorque a afundar-se em crime, bancarrota e desorientação global, nada. Tinha escolhido viver parcialmente da sua escrita, recusando convites de universidades para dar aulas de Literatura Portuguesa por não lhe pagarem o suficiente, dependendo em boa parte dos direitos de autor que recebia de Lisboa, esta também uma cidade deprimida, atrofiada, e com um número de leitores bastante reduzido, como se sabe. Assim mesmo, e ele merecia-o inteiramente, tinha mais leitores do que a grande maioria dos escritores portugueses da época, talvez o que mais vendia entre todos eles sem nunca baixar a seriedade e profundidade que a aparente leveza da sua escrita escondia. Eis a maior ironia desta correspondência, em retrospectiva, entre dois gigantes da nossa literatura: José Saramago, com menos de 40 anos de idade e muito longe do escritor mundial em que se tornaria, era funcionário da editora Estúdios Cor, sem título mas responsável por todas as questões literárias. Saramago estava encarregado de acompanhar o percurso de cada livro rumo à publicação, sentindo-se neste caso um aprendiz da escrita ante José Rodrigues Miguéis, louvando-o sinceramente em cada carta que lhe envia para Nova Iorque, submetendo-lhe humildemente algumas crónicas e poesia, nomeadamente a que viria a constituir Os Poemas Possíveis (1966), o seu segundo livro após a ficção de Terra do Pecado (1947). O futuro autor do Memorial do Convento revela em linguagem tão fina como irónica o seu próprio estado de espírito e o pathos da Nação a enfrentar uma nova e triste fase da sua história. Toda a linguagem aqui é quase codificada ou metaforizada por medos, supõe-se, de intercepção das cartas, pois Miguéis desde há muito era vigiado e classificado como besta negra do regime ditatorial, tornando a prosa de Saramago ainda mais deliciosa, justa e significante, retrato de um país em Silêncio quase total. Nestas cartas sobressaem toda a sua humanidade, toda a sua solidariedade, ele todo um gesto autêntico de aproximação humana e companheirismo, sem nunca cobrar ideologicamente do escritor Miguéis, que ele tanto valorizava na sua correspondência e defesa dentro de uma editora que pagava muito mal aos dois, ou pagava o possível num país pouco letrado e de incitativas mortas como o nosso. Teve ainda a sorte (Miguéis) de se corresponder durante alguns anos com José Saramago, na altura, repita-se, uma espécie de seu aprendiz, hoje o escritor também falecido mas que continuará através deste volume de cartas a dignificar e testemunhar a grandeza literária de um Miguéis que viveu na ansiedade perpétua do seu afastamento, sem nunca deixar de amar o seu país e de lançar sucessivos clarões sobre a nossa identidade nas contingências pátrias e na Diáspora.
texto publicado incialmente em Açoriano Oriental.