Levantado do chão
Romance, 1980
Romance, 1980
Edição brasileira de Levantado do chão pulicada pela Bertrand Brasil |
"Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando terminasse: 'Isto é o Alentejo'.
Dos sonhos, porém, acordamos todos, e agora eis-me não diante do sonho realizado, mas da concreta e possível forma do sonho. Por isso me limitei a escrever: 'Isto é um livro sobre o Alentejo'. Um livro, um simples romance, gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes fomes, as vitórias e os desastres, a aprendizagem da transformação, e mortes.
É portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação. Leva como título e nome, para procurar e ser procurado, estas palavras sem nenhuma glória - Levantado do chão.
Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo."
[José Saramago, texto da contra-capa da edição brasileira do romance publicado pela Bertrand Brasil]
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Romance bem delimitado no tempo e no espaço: entre 1910 e 1974, entre duas revoluções, no Alentejo. Uma família estabelece ligação, do avô à bisneta, atravessando a experiência história de uma decepção a uma esperança. Não se trata de um documentário nem de uma crónica entremeada de laivos ficcionais mas de uma obra romanesca em que a criatividade embebe o acontecimento e a ideia numa bem realizada ambiência estética.
Ao longo da narrativa predomina a figura do ser humano vergado para a terra, condicionado por um Poder obscuro que lhe dita o horário, a alimentação, a casa, que o leva de terra em terra ou de cadeia em cadeia. Poder emanado do latifúndio ou concentrando-se objectivamente no latifúndio, este ganha, de qualquer modo, uma dimensão fantasmática de ancestral recalcamento, próximo e longínquo, objecto de desejo e rancor, imagem da enormidade e agente da fome. O latifúndio assume forma de Poder - "O latifúndio ordena os capatazes" - ou forma de espaço contendo ambiguamente toda a espécie de vida e morte - "O latifúndio é um mar interior. Tem os seus cardumes de peixe miúdo e comestível [...] e também grandes anéis serpentinos de estrangulação". De tal maneira que quando, um dia, o homem levanta o corpo e a condição, o latifúndio lá continua a insinuar-se ao desejo de possessão numa imediata distribuição de Poder. Este o drama vivido colectivamente num livro que é, antes de tudo, uma obra muito bem conseguida de literatura.
Em fragmentos que se vão sucedendo à maneira de contos interligados, perpassa frente ao constante pano de fundo do latifúndio, um núcleo idêntico de elementos com carácter bipolar: família e terra. Entre o homem e a matéria, matéria/solo, opera-se uma união que a própria História explica como condição de mútua significação. A terra dura da superfície, sem a dimensão telúrica porque está apenas em causa a sua crosta onde se inscreve o dia-a-dia do home, também sem a dimensão lírica ou bucólica porque essa é objecto de suspeita de alienação face à violência dos dados vividos. Como se vê, estamos longe, apesar de tudo, de A Planície Heróica de Manuel Ribeiro. A crosta da terra pode transformar-se, é certo, mas por um outro género de agressividade: a chuva persistente que encharca e torna a terra um obstáculo às caminhadas.
A grande realidade que envolve, e quase diria também encharca, a vida do ser humano é o trabalho, o diário confronto com o solo alheio. A alternativa é uma outra realidade, de ordem política, a repressão policial, interrompendo a primeira para melhor mostrar a Força superior e vigilante, reforçando uma consequência comum, a subjugação. Ao núcleo central família/terra sobrepõe-se, assim, o binómio trabalho/repressão ou campo/cadeia, dramatizando-o mais violentamente. Por isso mesmo, a escrita deste romance desenrola-se, em geral, de forma tensa, numa linguagem sólida, numa situação em transe, acontecendo, por vezes, que a tonalidade de acto crispado se quebra, derramando-se, então, a reflexão especulativa, amarga e patética. Neste caso, apesar de hábil utilização de processos notada predominantemente, o controlo da escrita romanesca esvai-se, sobrepondo-se a premência ideológica ao rigor estético e funcionando a aludida expressão "Abril, falas mil" não apenas como libertação da fala mas também como exibição da fala.
Se só por si esta história não segue uma ordem linear e rígida no encadeamento dos acontecimentos, mais evidente isso se torna com a recorrência de evocações remotas que impõem ao presente quotidiano um prolongamento indefinido até ao feudalismo medieval, quer por nomes senhoriais valendo por si próprios em lugar da presença física, quer por costumes ou episódios que, intromete-se na realidade presente, denunciam mais vivamente a condição ancestral do trabalhador submisso. Outra incidência no binómio que funciona como constante da história, trabalho/repressão, é a introdução de breves momentos festivos, a boda ou o nascimento de um filho. Esta incidência não tem o carácter de aprofundamento no tempo mas, pelo contrário, de realce da excessiva efemeridade dos intervalos, tanto mais que, mesmo aí, o horizonte do trabalho acena sempre à maneira de espectro do dia seguinte. Este complexo de constantes e variantes faz-se, aliás, segundo o paradigma das próprias searas: "A história das searas repete-se com notável constância mas tem variantes." De acordo com isso mesmo, a variação do ritmo, que alterna, por vezes, a tensão e o sobressalto com a distensão mais lenta e mais débil da explanação de ideias.
Este romance de José Saramago consegue combinar a visão de uma realidade à superfície, na sua envolvência, na sua materialidade, na sua opacidade, com uma ductilidade de escrita que produz nessa mesma realidade ressonâncias mais vastas. Daí que a delimitação cronológica e os limites aparentemente estreitos da problemática se dilatem numa proporção e numa densidade que são a de uma condição humana à procura da plena identidade dentro da dignidade do própri trabalho.
[FARIA, Duarte. Recessão crítica ao Levantado do chão. In: Revista Colóquio/Letras, n. 61, maio de 1981. p.79-80]