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Memorial do convento
Romance, 1982



Edição brasileira de Memorial do convento publicada pela Bertrand Brasil

























Trata-se de um texto memorável como já se é de esperar do escritor de Ensaio sobre a cegueira. Portando sua linguagem escorreita que margeia os quatro pontos cardeais das páginas do livro, Memorial do convento é o retrato outro – apesar de um texto ficcional – da formação histórica-social portuguesa. Integra, portanto, o rol dos romances cuja essa temática é inerente – como Levantado do chão, A jangada de pedra etc. Por ele, além de se entrever um re-engendrar da história oficial portuguesa, vista como de costume saramaguiano, sob outro viés, assiste-se também as raízes que viriam fundar outros grandes romances do escritor; digo isso porque vejo muitos materiais que serão retrabalhados em textos como O evangelho segundo Jesus Cristo, O ano da morte de Ricardo de Reis, para ficar em dois outros textos memoráveis do escritor. O que salta aos olhos do leitor saramaguiano de Memorial do convento é um narrador brilhante, polido no caráter da observação, sarcástico e irônico para com os fatos que vão se desenrolando ao longo das 345 páginas (isso na edição brasileira publicada pela Bertrand Brasil).

O livro conta a história da construção de um convento em Mafra, erguido depois de uma promessa do rei português para conseguir um herdeiro ao trono – coisa que desde que se casara vinha tentando. Nas entrecruzadas do fato o que se assiste é o desenlace de outras histórias: a da própria construção do convento; a de Baltazar, um ex-combatente maneta, e Blimunda, uma mulher capaz de ver o interior das pessoas – ele Sete-Sóis, ela Sete-Luas – como os Mau-Tempo no outro romance de Saramago, Levantado do chão; e a história do padre Gusmão que queria voar e construiu seu voo numa maquineta apelidada de passarola, mas morreu doido.

[Nota publicada no Blog Letras in.verso e re.verso]



É sabido, e bom será lembrá-lo aqui, que o romance conquistou o primado entre as formas literárias quando apropriou e aprofundou a riquíssima herança da mimesis shakespeariana do multifacetado viver dos indivíduos ao tecido social de múltiplas relações e contradições, i.e., quando a mimesis romanesca foi capaz de nos dar, na esfera autónoma da arte, imagem e avaliação estética da existência dos seres humanos como e porque indivíduos. Digo mimesis, não imitação, nem simples reprodução - falo de representação artística que vive da verdade concreta das personagens, centrais e periférias, em relação com a essencial verdade do narrador, seja qual for a sua voz, o seu modo, o seu ângulo de narração.

Sabido é também que o narrador tem um papel e uma função fundamentais na modelização (construção do modelo que a obra de arte é) narrativa do romance, e que desde Dostoiévski há uma complexa componente lírica, ou liricizante, no seu narrar. Na nossa época literatura nacional, o romance como hoje o conhecemos nasce da inteligente tematização da realidade portuguesa e da avaliação poética desta por Garrett nesse clássico que é Viagens na Minha Terra. Com o próprio José Saramago, em Levantado do chão, aprendêramos que o narrador, na sua dupla função de objectivar e subjectivar, pode criar e fazer viver no seu discurso personagens que dão vida, e forma, e conteúdo, ao seu discurso.

Surpreender-nos-á, então,depois de Levantado do chão, este Memorial do Convento: por não estar à altur do romance que o precedeu, por não ter conseguido modelizar-se como romance, pelo doloroso fracasso do narrador. Este é, aliás, o problema fulcral: enquanto em Levantado do chão a ambiguidade consciente do narrador e cronista é esteticamente produtiva, pois que a voz da narrativa se constrói como consciência estética do real narrado, em Memorial do convento a voz que se nos dirige hesita entre o relato e a tentativa de ficcionar, entre a transmissão de informações e a tremulação (para dizer com D. H. Lawrence) romanesca, não indo além de uma pesada omnisciência capaz de efeitos retóricos mais ou menos fáceis mas incapaz de nos guiar para a participação estética no material tematizado, em si mesmo fragmentário e desconexo e só a espaços precariamente ordenado como ficcional. Dito de outro modo: o A. imitou aqui, qual epígono de si próprio, o narrador construído do romance precedente, o que se revela um maneirismo esteticamente estéril. Neste plano da consideração crítica, Memorial do Convento fracassa porque lhe falta a voz ordenadora do narrador em pleno e rigoroso sentido. (Que não se pode confundir narrador com cronista, nem narração com o simples relato!)

Num outro plano de análise teremos de reconhecer que em Memorial do Convento não encontramos personagens na sua verdade concreta - em parte porque a voz do cronista o não consente, mas fundamentalmente por o A. jamais consegue estabelecer uma conexão temática entre eles. Baltasar e Blimunda são simples abstracções, Bartolomeu Lourenço uma figuração equívoca, as figuras populares são dissolvidas e desenraizadas pelo relato do cronista. Sólidas são apenas, como seria de esperar (e recear), as figuras históricas. Todas as outras ficam a pairar no vácuo ficcional como memória de um livro anterior. Os nomes, por mais interessantes, não têm o poder de conferir verdade poética.

Sem um narrador em diálogo connosco, sem personagens enquanto modelos vivíveis (e apropriáveis) de experiência individualizante, Memorial do Convento a si mesmo se destitui de relevância estética, pois que não faz, nem promove, uma avaliação estética do real. Um único assomo avaliativo se desenha no texto, quando o "José Pequeno" pergunta "como é que um boieiro se faz homem", mas não há respostas no texto para esta pergunta decisiva (e havia-as tão inteligentes e profundas em Levantado do Chão!), nem sequer se poderá dizer que o texto a suscita ou justifica.

Bem avisado andava o Poeta ao distinguir entre engenho e arte. Bem avisado andará o autor que distinga entre o tratamento do presente partilhável por autor e receptor e o tratamento do passado sem relevância para o presente.

Surpreendente, não menos do que o inêxito artístico e estético do livro, foi o coro entusiástico de vozes que louvaram como um grande romance. De gustibus non est disputandum. Penso, no entanto, que qualquer leitura inteligente de Memorial do Convento nos faz perceber que o livro, por mais interessante que o possamos achar, não chega a ser um romance, será quando muito um tratamento superficialmente romanceado de materiais históricos. Não fora isso, seria quase um caso de pedir desculpa por se discordar.


[PINA, Álvaro. Recessão crítica a Memorial do Convento. In: Revista Colóquio/Letras. Recessões críticas. n.76, nov.1983, p.83-84]