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O artesão inquieto da língua portuguesa



"Há muita semelhança entre o trabalho no computador e a olaria, muito mais do que possa parecer à primeira vista. No fundo, o computador é um pouco isso, temos uma idéia e podemos pô-la ali, errada, incompleta, confusa. (...) Assim como o trabalho do oleiro que, a partir do barro, que não tem forma, chega a esse outro barro, que é a frase correta, a idéia completa", afirma José Saramago.

José de Sousa Saramago é alto e esguio, físico invejável para um quase oitentão. Às vastas sobrancelhas opõe-se a calvície. Os óculos lhe caem enormes para o rosto alongado. Os cabelos que restam, grisalhos, parecem livres, ao vento e avessos a pentes. Combinam com a imagem que se tem dos humanistas, sábios e magos das letras.

Desde 16 de novembro, ao completar 78 anos, deixou para trás o sossego de Lanzarote, nas Canárias. É lá que mora desde 1993, quando trocou Lisboa e as caudalosas margens do Tejo pela aridez da ilha vulcânica, sem uma gota de água doce, já que banhada não é por um riacho que seja.

Seu aniversário coincide com o lançamento mundial de seu último romance, A Caverna. Desde que o livro foi parar nas prateleiras, Saramago já peregrinou por 14 cidades de Portugal, Moçambique e Angola até chegar ao Brasil, que deixará apenas às vésperas do Natal.

Saramago é um inquieto. Assim como em sua obra, Saramago deixa por onde anda - como pegadas - preocupações sobre o mundo e suas injustiças. Se o tempo deu-lhe a serenidade, esqueceu-se caprichosamente de lhe tirar a disposição ao debate. Responde exaustiva e meticulosamente ao que lhe perguntam, sempre com a fronte crispada e a gravidade que os temas exigem.

Se lhe pedem para comentar o título do livro, responde solene: "Nunca houve uma semelhança tão completa, tão chegada, com a situação em que se encontravam as pessoas que Platão imaginou metidas em uma caverna olhando uma parede, vendo sombras e acreditando que aquelas sombras eram a realidade."

Se o assunto é a literatura em língua portuguesa, mais sério ainda retruca: "O facto é que a presença do inglês é de tal forma invasora de vosso cotidiano que é caso de vocês se preocuparem não com o destino da literatura em língua portuguesa, mas com o destino da própria língua."

Em seu primeiro livro desde que recebeu o Nobel, resolveu atacar a substituição do trabalho artesanal pela indústria. Cipriano Algor é dono de uma olaria cujos artigos de barro não mais interessam ao "Centro", que passa a preferir os de plástico. Ao contrário de Cipriano, Saramago diz: "Meu trabalho, a sociedade ainda o quer, não sei até quando." E reforça que se deve levar em conta os custos sociais que as inovações tecnológicas implicam na vida e no trabalho das pessoas. Quem fala a Saramago tem como interlocutor mais que o prosador de talento indiscutível. Tem um observador atento dos rumos que o mundo está tomando.

Depois de grandes autores, como Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, hoje o senhor é o escritor mais conhecido da literatura em língua portuguesa no mundo. Qual a contribuição que a língua portuguesa pode dar à literatura universal?

É uma resposta que está implícita na pergunta. Nós tivemos Camilo Castelo Branco. Há cem anos vocês tinham Machado de Assis. E desde já há 800 anos que nós andamos a escrever nossa literatura. Enfim, até a data da independência, herdam como coisa vossa também a literatura que era portuguesa e, a partir dessa altura, há uma literatura brasileira. Nesse momento, estão a nascer literaturas novas, em Angola, Moçambique, Cabo Verde. É uma língua que não tem que estar preocupada com a sua contribuição à cultura universal, em primeiro lugar, porque já deu e, em segundo lugar, porque há todos os motivos para continuar a dar, tanto a literatura portuguesa como as literaturas em língua portuguesa.

Agora isso também depende do futuro da própria língua. Enfim, aqui não se pode dizer que vocês estejam a ter muito cuidado com ela. Você passa nas estradas e tudo o quanto se anuncia é em inglês. Então amanhã vossos escritores vão começar a duvidar se vale a pena escrever em português ou se vão passar a escrever em inglês. Não quero dizer que vá suceder isso, mas o facto é que a presença do inglês é de tal forma invasora de vosso cotidiano que é caso de vocês se preocuparem não com o destino da literatura em língua portuguesa, mas com o destino da própria língua.

O senhor acha que ela está ameaçada?

Ameaçada... Quer dizer, todos estamos ameaçados: nascemos, vivemos e morremos. Estamos sempre ameaçados de uma doença, de um acidente. Aquilo que podemos fazer, desde que tenhamos condições para isso, é cuidar de nós, da nossa saúde. No caso dessa conversa, enquanto houver língua portuguesa, haverá literaturas. O que estava só a comentar, a manifestar lateralmente, é uma certa inquietação pessoal — é possível que não seja a vossa. Simplesmente começo-me a perguntar... Aquilo que vocês chamam shopping center, nós chamamos centro comercial. Nós continuamos a falar português e vocês já... Eu só me preocupo com o destino de uma língua que já está viva há oito séculos, que tem capacidade para continuar vivendo por muito tempo, desde que a cuidemos, tal como a saúde.

O senhor é a favor de medidas restritivas do uso de línguas estrangeiras, como as que a França adotou?

Eu não creio que seja necessário recorrer a medidas radicais. Por exemplo, a palavra automóvel, que é nossa, que é vossa, nós recebemos do francês "automobile". Adaptamo-la à nossa escrita própria e transformamo-la em automóvel. As línguas têm que se comunicar umas com as outras. Se não há uma palavra que sirva em uma determinada língua, aproveita-se de outra, adapta-se, isso sempre surgiu assim. Se não fosse o latim, não falávamos português.

Agora, o que me parece que é motivo para preocupação é a indiferença com que em certos lugares — e acredito que o Brasil é um deles, acho que é óbvio — abrimos a porta e jogamos fora palavras nossas que servem tão bem como aquelas que querem entrar. Abrimos a porta, atiramos a palavra fora e ficamos, enfim, com a que não nos pertence. Que nós conheçamos a outra língua é ótimo, mas conhecer a outra língua não significa que tenhamos de adotá-la. Isso conta com a inércia ou com a cumplicidade daqueles que estão no lugar onde ela quer entrar.

Então, mais facilmente há uma espécie de corrupção da própria língua por parte de uma língua mais forte. E a mais forte, evidentemente, é o inglês. Agora, medidas drásticas, proibições, eu não sei se vale a pena. O que eu acho é que é uma questão de educação, que começa na escola. E começando na escola, acaba por ter influência na própria sociedade.

No fundo, a língua é uma ferramenta de comunicação. Imagine que eu escreva em português e, em vez de escrever como eu escrevo — bem ou mal, não é isso que se discute —, eu começasse a empregar todos esses termos em inglês... O que vocês chamam "mouse" do computador nós chamamos rato. Por que não é certo chamar rato, se "mouse" é rato?

Mas não vamos ficar aqui a falar dessas coisas. A língua portuguesa aqui sobreviverá, provavelmente não é um drama por cem anos. Isso será resolvido. Ou nossa língua terá ou não sobrevivido ou o inglês será substituído pelo espanhol. Nos Estados Unidos já se encontra tanta gente que fala espanhol... Então pode ser que, no futuro, não se fale de uma coisa nem de outra e se fale de uma mistura de todas as línguas.

A respeito do seu último livro, A Caverna, o senhor teve a intenção de fazer dele uma crítica à globalização, ou à "concordância de objetivos das multinacionais", que é como o senhor se refere a ela? Pode-se tomar o personagem Cipriano Algor como um fornecedor de um grande centro comercial ou como um país de terceiro mundo...

Não exageremos. São duas situações distintas... Não distintas, mas de todo modo podem ser isoladas. Em primeiro lugar, a situação da gente dessa olaria. O livro preocupa-se com isso, quer dizer, com o que se passa com essa gente que, de repente, subitamente, se vê sem trabalho.

Evidentemente que o caso dessa gente da olaria não é único, e pode passar-se do caso familiar a uma situação geral, como é a de profissões que não interessam, que já não servem, que já não são úteis à sociedade e que a sociedade despreza.

Eu cito, em geral, o caso da adoção industrial do tear mecânico. Os tecelões manuais, que eram milhares e milhares na Inglaterra, viram-se, de um dia para o outro, sem trabalho, na ruína. Muitos deles suicidaram-se. Portanto, isso tanto pode ser tomado como o caso de uma família que se veja nessa situação como se pode entender, o que é perfeitamente lógico, que há uma classe social ou uma gama de trabalhos que a sociedade já não quer, e esse caso exemplifica todos.

Essa questão da substituição do trabalho artesanal por um trabalho mecânico e industrializado já acompanha a humanidade há dois séculos. Por que o senhor resolveu tratar esse tema nesse momento? O que o tocou?

As inovações tecnológicas, sobretudo nesse sentido que tem que ver com a produtividade, evidentemente que sempre tiveram custos sociais e agora mesmo acabei de citar um. A invenção do tear mecânico conduz à ruína. O capitalismo nascente não estava nada preso, preocupado com o destino dessas pessoas. Agora, o que eu considero não é que isso tenha que ser uma fatalidade para sempre. Quer dizer que cada inovação tecnológica vai trazer vítimas. Que tem de fazer vítimas, tem. Agora, o que me parece é que a sociedade, os cidadãos, as organizações, o Estado têm que pensar quais são os custos sociais dessas inovações. E não é para não a pôr em prática! Não é para dizer: "Bom, isso tem custos sociais, não vamos aplicá-lo." Não, vamos aplicá-lo. Não se pode agora dizer: "O progresso tecnológico, a investigação científica parou aqui, daqui por diante não se anda mais." Não se pode. A meu ver, parece-me que é apenas uma questão, quase diria, de senso comum, porque se pode se saber hoje sem nenhuma dúvida que a aplicação de uma determinada teoria no campo tecnológico em qualquer atividade produz custos sociais, há que se atender a esses custos. Se, ao contrário disso, a invenção tecnológica se destina no fundo a uma maior produtividade que vai beneficiar apenas um lado, então temos que chegar à conclusão de que devemos protestar. E não é por acaso que 224 ou 225 empresas multinacionais tenham 47% da riqueza mundial. Essa é que é a questão.

Como o senhor se relaciona com as novas tecnologias?

Eu estou muito atualizado nisso, não tanto quanto poderia. A minha casa é governada por minha mulher. Trabalho com um computador de última geração, um computador estupendo que faz tudo quanto eu quero, mas que uso simplesmente como uma máquina de escrever e algumas coisas mais, claro. Uso o meu rato, não uso o vosso mouse, e acho que é um magnífico instrumento de trabalho. Há muita semelhança entre o trabalho no computador e a olaria, muito mais do que possa parecer à primeira vista. No fundo, o computador é um pouco isso, temos uma idéia e podemos pô-la ali, errada, incompleta, confusa, e vamos trabalhar sobre a idéia. Assim como o trabalho do oleiro que, a partir do barro, que não tem forma, chega a esse outro barro, que é a frase correta, a idéia completa.

O senhor se identifica com Cipriano Algor? Afinal, exerce uma profissão, a literatura, que preserva muito do seu caráter artesanal e, assim como ele, vem de longe, atravessa o "cinturão verde", o cinturão industrial, para vender sua arte...

Sim, mas compreendo que há aí uma grande diferença. Por enquanto, o meu trabalho, a sociedade ainda o quer, não sei até quando... Mas o trabalho de Cipriano Algor é que defronta-se com a fabricação de coisas de plástico com as quais ele não pode competir e a atividade artística pode.

No seu livro o senhor escreve "o Centro escreve certo por linhas tortas", substituindo a palavra "Deus" do ditado original. O senhor acredita que esse mercado ocupa hoje o lugar das divindades?

Não sei se ocupa, mas, como você deve ter visto, o chefe do departamento de compras numa certa altura diz que o Centro também produz espiritualidade. Isso evidentemente que é uma ironia — ou talvez não seja uma ironia tão grande quanto parece. No passado a mentalidade, sobretudo nessa área da cultura e da civilização, claro que estava influenciada pelo cristianismo, na versão católica ou nas versões protestantes. Pode-se dizer que a mentalidade das pessoas era formada em uma grande superfície, que era a catedral. Era dali que recebiam valores, moral, mesmo aqueles que não eram crentes. Era ali que estavam e viviam, numa sociedade toda ela determinada por essa influência, portanto indiretamente terminavam por ter a mesma mentalidade. Eu sou ateu, mas tenho uma mentalidade cristã. Não posso ter outra, como uma mentalidade budista... Agora, acho eu, como pode ser que esteja equivocado — admito sempre —, a nova mentalidade é formada em outra grande superfície, chamada, conforme vocês preferirem, centro comercial ou shopping center. E isso está perfeitamente claro. Basta ver que o único espaço público onde as pessoas se reúnem efetivamente é o centro comercial. As pessoas deixaram de se encontrar nas praças, nos jardins, nos parques, onde reina a insegurança. Quando eu falo dA Caverna como símbolo, não é tão símbolo quanto isso, porque as nossas próprias casas estão a transformar—se em cavernas. Quando se rodeia uma casa de grades, arame farpado ou eletrificado, está um guarda—porta com uma pistola metida no coldre, evidentemente há uma espécie de encerramento [fechamento]. E, curiosamente, quando se entra — eu não entro muito, mas creio que é assim — num centro comercial tem-se uma impressão de segurança total, onde não acontece nada. Penso eu que é inevitável, em um modo de viver como esse, que o único lugar onde as pessoas se reúnem e podem conviver é o mesmo que tem que funcionar, digamos, nos termos do puro mercado, porque se as vendas baixarem a administração do shopping center tratará de encontrar as soluções para que as vendas tornem a aumentar. Pode-se argumentar: "Ah! Mas as ruas da cidade também eram isso." E aí segue-se em frente. Talvez isso não tenha muita importância... Por que estou a preocupar-me com isso? Enfim, vocês que são jovens, daqui por 50 anos, quando tiverem a minha idade, logo poderão dizer: "Olha, afinal de contas ele não tinha razão, que a vida transformou-se em um paraíso. Eu é que estava muito preocupado." É o que acontece com as pessoas de idade que começam a se preocupar quando já não deveriam porque já não têm tempo. Agora, que o mundo não parece numa boa direção eu creio que não está.

Há uma bela passagem em seu livro em que o senhor compara Cipriano Algor e seu genro, bem mais novo, e fala que...

...nem os jovens sabem o que podem, nem os velhos podem o que sabem. É uma verdade, como a evidência mesma da luz. Os velhos — eu tenho uma certa relutância em incluir-me entre os velhos mas, enfim, os factos são os factos e eu tenho que assumir isso —, acontece que sabemos muito, podemos ser analfabetos, mas sabemos muito, mas já não podemos aquilo que sabemos. E os novos...

Os novos nem sempre têm uma produção tão prolífica quanto a sua...

É porque eu trabalho muito e vocês trabalham pouco.

Isso é porque hoje o senhor sente que tem muito a dizer?

Entre o meu primeiro livro e o segundo, eu estive praticamente vinte anos sem escrever, entre o ano de 1947 e o ano de 1966. E creio, olhando para trás, para essa decisão de ter começado a escrever aos 24 anos e só tornar a escrever aos 44, que se pode perguntar por que isso aconteceu. A resposta que creio que deva dar hoje é porque achei que não tinha nada para dizer.

O senhor não esperava voltar a escrever mais tarde?

Não. Às vezes pode—se dizer assim: "Ah! É que ele decidiu ganhar experiência para depois." Isso é um completo disparate. Quem é que poderia garantir a mim vida suficiente para eu estar tranqüilo, à espera durante 20 anos até a altura em que teria experiência e começasse a escrever? Podia morrer aos 42 e lá se ia todo aquele tempo em que eu tinha estado à espera. O que acontece é que vamos vivendo, pelo menos foi o que aconteceu comigo. A cada momento fiz aquilo que deveria, exerci diversas profissões, nunca tive nenhuma ambição de fazer uma carreira. Nunca, mas nunca, nunca. Nos tempos modernos seria um vencido. Nos tempos de agora, em que toda a gente entrou numa espécie de correria louca para ganhar, para triunfar, eu seria um vencido. Eu não compito. Eu faço simplesmente aquilo que tenho que fazer a cada momento. Depois o resultado disso também não me preocupa. Acontece o que tem de ser.

Qual a função do escritor nessa sociedade de agora que o senhor descreve?

Ora, nós já estamos há tantos anos a escrever e vocês ainda fazem esse tipo de pergunta. Mas agora, agora... É sempre de se preocupar. Se você está preocupado porque vivemos um tempo de crise, tenho que recordá-lo que havia crises no passado também, crises de todo tipo: espirituais, econômicas, de isto e de aquilo. Você não vai perguntar a um médico qual vai ser a função do médico neste tempo de crise. O médico responde com toda a simplicidade: "Vou continuar a curar." E neste tempo de crise o escritor vai dizer: "Vou continuar a escrever." E mesmo se chegar um momento em que já não valha a pena escrever, que não haverá mais ninguém que leia — estou supondo o cenário mais catastrófico que se pode imaginar —, suspeito que mesmo nessa altura ainda haverá quem esteja a escrever, mesmo sem a esperança de ser lido. Portanto, não há função. Se você quiser dizer "o que o escritor faz como cidadão num tempo como este?", temos que perguntar se o cidadão que o escritor é se esconde por trás do escritor para não intervir na sociedade ou se, pelo contrário, o que prevalece é o cidadão sobre o escritor e ele intervém como qualquer outro. A função, ou a intervenção, que se espera do escritor é aquela que se deve esperar de qualquer cidadão, seja ele o que for, exerça ele a profissão que exercer. A diferença mais importante é que o escritor tenha uma voz, que ela chegue, alcance o que escreve, portanto é livre. Evidentemente que um empregado de comércio, que também é um cidadão, está a fazer o seu trabalho, mas isso não tem efeitos desse tipo na sociedade. O escritor decide sobre o que quer fazer ou ele é uma pessoa que, por princípios seus, por ideologia ou por espírito cívico, intervém ou então considera que está no direito de dizer: "Eu estou com meu trabalho literário e não quero saber de mais nada."

O senhor comentou que também havia crises no passado, no entanto afirma que nós nunca estivemos tão próximos dA Caverna de Platão. O que o faz pensar assim?

Nunca houve uma semelhança tão completa, tão chegada, com a situação em que se encontravam as pessoas que Platão imaginou metidas em um A Caverna olhando uma parede, vendo sombras e acreditando que aquelas sombras eram a realidade. Nunca houve ao longo desses dois mil e trezentos anos uma situação que se parecesse tanto. Nós rodeados de imagens, cercados de imagens, bombardeados de imagens, enfim estamos em uma situação em que as mesmas imagens que estão aí para mostrar o que é, de uma certa maneira já servem para esconder a realidade.

O senhor muitas vezes é acusado de pessimista, mas tenho a impressão de que, ao tratar as grandes questões humanas, o senhor não perdeu a confiança na generosidade. Essa confiança diminuiu ao longo do tempo?

Em primeiro lugar, vamos tentar arrumar essa questão do otimismo ou do pessimismo. Creio que não vale a pena encarar a questão se a visão de um determinado facto é ou não pessimista. Claro que, se uma pessoa está contente com a vida, tem uma tendência de achar que até o próprio mal não é tão mau quanto dizem ou a mim já não será. Se a pessoa está mal, tem uma tendência contrária, de achar que a vida está contra ele. Mas independentemente dessas duas visões extremas, creio que há algo que está aí, que é o facto. O facto não é nem pessimista nem otimista. A interpretação que nós temos dele pode pender de um lado a outro, mas não altera o facto. O que nós devemos é ser suficientemente objetivos e ter um sentido crítico, com critérios claros, para não ficarmos a debater a eterna questão do otimista e do pessimista, e ver esse facto como é, de onde vem, que conseqüências vai ter e, se é um problema grave, resolvê-lo. Mas sem essa tentação de dizer: "Você é otimista, você é pessimista." Porque senão ficamos naquela questão do copo d'água, que o pessimista diz que está meio vazio e o otimista diz "não, não, está meio cheio", e não acabamos. O facto é que tem uma determinada quantidade e o que nós temos que perceber é se essa quantidade nos mata a sede ou não nos mata a sede.

Quanto à generosidade, se há uma coisa em que eu não acredito é na generosidade da espécie humana. Acredito na generosidade de pessoas, esta, aquela, aquela outra. Mas tenho todas as razões para duvidar e simplesmente dizer que a espécie humana não é generosa.

O senhor afirmou certa vez que, a partir de Ensaio sobre a Cegueira, passou a se concentrar em aspectos essenciais de sua obra. O que o senhor deixou de lado, por ser acessório, em sua maneira de escrever?

Eu não chamaria de acessório. Eu creio que os próprios temas, de alguma maneira, nos impõem, determinam, o modo de tratá-los. Eu posso citar, creio eu, livros meus, como Memorial do Convento ou mesmo até O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Creio que compreenderá facilmente que eu não poderia transportar esse modo de narrar para o Ensaio sobre a Cegueira. O tema tem a sua própria exigência. Não anula evidentemente a personalidade do autor. O Evangelho Segundo Jesus Cristo, por exemplo. O livro que vem a seguir é o Ensaio sobre a Cegueira e, apesar das diferenças — é um estilo mais seco, mais conciso, mais austero — reconhece-se que o autor disto é o autor daquilo. O que eu digo é uma metáfora e, embora eu tenha dito, em um romance que se chama Todos os Nomes, que a metáfora ainda é a melhor maneira de explicar as coisas, também há que ter muito cuidado com metáforas, porque supostamente dizem aquilo que se quer e ficamos agarrados a elas, e às vezes elas não dizem tanto quanto pensávamos.

O que eu costumo dizer é que até O Evangelho Segundo Jesus Cristo é como se eu tivesse andado a descrever uma estátua. Aquilo que nós chamamos uma estátua é a superfície da pedra. Quando olhamos para uma estátua de mármore, por exemplo, o que nós recebemos daquela pedra é sua superfície esculpida. Estamos a pensar na escultura, na imagem da pedra, e agora, até A Caverna, é como se eu deixasse de descrever a superfície para passar para o interior dela, quando ela ainda não sabe se vai ser estátua ou qualquer outra coisa. Portanto, é como se eu procurasse o que há de mais fundo — com toda a retórica que isso também pode dar — no ser humano.

Há outra passagem de A Caverna em que o senhor diz que as palavras são como pedras de um rio e o que importa é atravessar o rio, dar um significado mais profundo ao que está dito ou escrito. Há alguma relação com o que o senhor acaba de dizer? A sua literatura quer achar uma grande metáfora, uma parábola, um significado para as grandes questões humanas?

Não sei. Não inspira tanto, não tenho tantas pretensões assim. Mas há um conto, muito leve, que eu suponho que conheçam. É o Conto da Ilha Desconhecida. No fundo, talvez seja uma espécie de síntese de tudo aquilo que eu tenho tentado expressar ao longo de milhares de páginas, no conjunto não só de romances como de peças de teatro, contos e crônicas. A ilha desconhecida somos nós próprios e, nesse conto, quando se pinta dos lados que o nome da caravela é Ilha Desconhecida, as últimas palavras são: "Com a maré do meio-dia, a caravela partiu à procura de si mesma." E, no fundo, é isso. Nós andamos à procura de nós próprios e essa busca pode tomar vários caminhos, alguns passam pela religião, outros passam... os caminhos são múltiplos, e eu procuro passar, enfim, por uma coisa muito simples, mas parece que não funciona sempre, que é a razão.

Fonte: Portal Educacional
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