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O Evangelho segundo Jesus Cristo
Romance, 1991




Edição brasileira de O evangelho segundo Jesus Cristo.
Capa de Hélio de Almeida sobre relevo de Arthur Luiz Piza


























Frederico Reis, obscuro heterónimo pessoano, dedicou algumas reflexões à obra do seu presumível parente Ricardo. Este, afirma-se aí, admitiria a existência dos deuses gregos, ajuntando-lhes um, Jesus Cristo, "um deus a mais, mais nada". Para isto se inspiraria, "talvez em parte", precisa Frederico, em Alberto Caeiro e na sua concepção do Menino Jesus como "o deus que faltava".

Uma semelhante ideia de "falta" levou, nos primeiros séculos da nossa era, à confecção de evangelhos sobre a infância de Cristo que compensassem o quase silêncio dos quatro canónicos a tal respeito. Não é ociosa a questão sobre que fé ditava esta actividade apócrifa. Era, muito certamente, uma fé difusa, com deficiências teológicas, se não herética, mas fé, na intenção, comunitária - porque autenticamente comunitário era esse projecto de preencher, e de certo modo explicar, os vazios do cânon, sustentando-se em narrativas dispersas e informes, inventando onde estas não chegassem.

Pode imaginar-se que um comparável sentimento comunitário tenha conduzido José Saramago ao seu Evangelho segundo Jesus Cristo. Este livro permitia-lhe aduzir, e onde necessário inventar, o que "faltava" à fé que o cerca - própria ou dos outros, é secundário.

Há mais uma razão para colocar o evangelho de Saramago nas cercanias (na realidade, no âmago, já o mostraremos) do cristianismo. Trata-se do facto singelo de os evangelhos canónicos serem, eles próprios, artefactos comunitários. Os teólogos gostam de falar, a este respeito, de "uma história sob a óptica dum testemunho de fé. É uma maneira críptica de dizer que a historicidade é aqui problemas marginal e que esses textos reflectem, acima de tudo, a fé duma comunidade. Assim, mesmo que nos evangelhos atribuídos e apóstolos e discípulos não houvesse uma só palavra autêntica de Cristo (e supõe-se que não haja muitas), os evangelhos não seriam menos "autênticos", menos cristãos, ao terem nascido da comunidade com esse nome.

Por todos estes motivos, O Evangelho segundo Jesus Cristo de Saramago é um livro objectivamente cristão, e a sua incorporação na mitologia cristã universal tomou-lhe inevitável.

Há, todavia, dois aspectos em que este livro "cristão" inova: a acentuada humanização de Jesus Cristo e as gigantescas proporções dadas ao sobrenatural. A um e outro aspecto não falta, mesmo assim, uma surpreendente cobertura bíblica. Uma das seduções deste evangelho é mesmo a coincidência de numerosos relatos, indo por vezes até a infímos pormenores, com a realidade canónica. Isto funciona, por sua vez, como álibe para ousadas efabulações, sejam os amores de Jesus e Maria de Magdala ou os dilatados entreténs do mesmo com o Diabo e de ambos com Deus.

Mas os melhores efeitos são os que se obtêm de um entranhamento da fantasia com a factualidade canónica (ou simplesmente histórica, a exemplo do "Suave Milagre", a que há alusões nem tão veladas como isso). A memória cristã (ou de quem conheça os evangelhos) vê-se então permeada por uma realidade virtual, que (tal como sucede na narrativa central de A Relíquia de Eça) confere à história bíblica relevo e acrescida credibilidade. É assim que, neste evangelho, um episódio como o das bodas de Caná (p.340-7) atinge um efeito de real que é autenticamente prodigioso.

Esse diálogo com a canonicidade, prossegue-o o livro num outro ponto importante: é quando a narração de Saramago tira a um dado bíblico as normais consequências. Sirva de exemplo a suposta perene virgindade de Maria. Já sem insistir na total ausência de suporte textual para essa crença, baste-nos a naturalidade, quase se diria a ingenuidade, com que os evangelistas referem os "irmãos" de Jesus. É conhecida a presteza com que os exegetas lembram que, naquele tempo, também a primos se designava por tal nome. É uma informação interessante, mas longe de suficiente. A crença numa Virgem-Mãe foi claramente inspirada, um dia, pela misoginia - pouco evangélica, mas triunfante - do tardio e desnorteado apóstolo Paulo. Ora, o maior aliciante, e evidentemente o mais provocador, neste livro é sua concepção judaica, reinadia, carnal, pré-paulina do cristianismo. O Evangelho segundo Jesus Cristo põe em cena a hipótese, nostálgica, e compreende-se que subversiva, de um cristianismo liberto das racionalizações helenizantes e dos faustos romanos.

Foram eles, com efeito, o dogma e o poder - Paulo de Tarso e Constantino, a Teologia intrusa e a Igreja Imperial -, os contrafactores do cristianismo segundo Jesus Cristo. O deste ou dos outros Evangelhos. A eles, e não a Deus, cabem culpas. Por isso este livro perde em vigor e donaire sempre que traz ao palco essa personagem forçada: Deus ele-mesmo, encarregado dos malefícios do futuro, ser sanhudo, maníaco e irretratável, de uma ambição desmedida e sanguinária. É demasiado papel para quem apenas devera gerir, longinquamente, a máquina do Universo. O enigmático Pastor e um Deus ausente e, se de todo necessário, ameaçador chegavam e sobravam para sobrenatural.

Talvez devamos esquecer essa desnecessariamente jacobina figuração do Eterno (irmã da do "VIII Poema", de Caeiro, quanto ao resto o sublime texto que se conhece), figuração por vezes bem bisonha ("Vá, despacha-te, tenho mais que fazer, disse Deus, não posso ficar aqui eternamente", p.264). Tirado isto, fica-nos um romance do melhor Saramago: refinado, espirituoso, atento a tudo, mesmo àquilo a que ninguém lembrava dever atender-se. Algumas páginas deste Evangelho são das mais primorosas que o Autor escreveu. Relêem-se com ganho o diálogo de Maria e do filho quando se descobre que este herdou do pai o pesadelo (p.183-8), o primeiro dia de Jesus em casa de Maria de Magdala (p.277-83), as já citadas bodas de Caná, a morte de Lázaro e a ressurreição que não veio (p.427-33). Especial menção se dê ao magnífico segundo capítulo, o do misterioso amanhecer em que Jesus é concebido.

A contensão e hieratismo da linguagem romanesca de José Saramago encontraram aqui um terreno à sua exacta medida. Nessa linguagem atenta à lição de Vieira e Bernardes, houve sempre a sonoridade "bíblica", audível da redondez da expressão, no acabado do pensamento, na ingénua sabedoria. O carpinteiro José pode, agora, dizer, partindo para Belém: "Muitos foram os filhos de Israel que nasceram no caminho, o meu será mais um" (p.48). É possível poder falar-se de uma terra, "que havendo sido prometida a uns tantos, nunca viria a saber a qem entregar-se" (p.63). Ou de pedras com que se pode "erguer uma torre para a vigia, um obelisco para o triunfo, um uro para as lamentações" (p.110). Pode congeminar-se um aforismo assim: "Talvez os homens nasçam com a verdade dentro de si e só não digam porque não acreditam que ela seja a verdade" (p.193). Ou este, de redobrada premência: "Aos velhos, todos eles, deve-se responder-lhes sepre, porque, sendo já tão pouco o tempo que têm para fazer perguntas, extrema crueldade seria deixá-los privados de respostas, lembremo-nos de que uma delas bem pode ser a que esperavam" (p.217). Pode, finalmente construir-se um dramatismo de falas (como se fizera entre Blimunda e Baltasar, Raimundo e Maria Sara, Ricardo Reis e Lídia ou Marcendda), a beirar perigosamente o maneirismo, mas escapando-lhe sempre, por uma desarmante singeleza com é esta: "Maria de Magdala foi com ele, Olharei a tua sombra se quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos" (p.431).

O Evangelho segundo Jesus Cristo é a história do Menino Jesus de José Saramago. E uma pessoa pergunta-se - como um dia um outro singelo poeta - por que razão que se perceba não há-de ser ela "verdadeira". Com efeito, a realidade histórica vê-se aí levantada com minúcia, o objecto de fé tratado com enternecimento, a tradição cristã, doutrinária ou literária, e mesmo plástica, preservada com deferência. E, quanto ao sobrenatural recorde-se o Livro de Jobe, que punha já Deus e Lúcifer dialogando, numa inaudita camaradagem, e atente-se no afinco que a Santa Sé põe ainda hoje em advertir para a existência do Maligno. Em suma, um livro que mais preze a tradição é difícil de imaginar.

O que se chamou "Palavra de Deus" foi sempre, afinal, umas vezes ingênua, outras tantas vezes habilidosa, uma palavra de homens. Os Evangelhos oficializados são, também eles, uma literatura humana, que, tida como de inspiração divina, arrastou multidões e conseguiu mudar vidas. O Evangelho de Saramago, esse, é só literatura... até o momento, teologicamente interessante, em que a perturbadora beleza das suas páginas - como em Agostinho os cânticos cristãos - comece a produzir o que não fora planeado.

[VENÂNCIO, Fernando. Recessão crítica ao O evangelho segundo Jesus Cristo. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 125/126, Jul. 1992, p. 289-290.]