Se não tenho outra voz que me desdobre

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Se não tenho outra voz que me desdobre
Em ecos doutros sons este silêncio,
É falar, ir falando, até que sobre
A palavra escondida do que penso.

É dizê-la, quebrado, entre desvios
De flecha que a si mesma se envenena,
Ou mar alto coalhado de navios
Onde o braço afogado nos acena.

É forçar para o fundo uma raiz
Quando a pedra cabal corta caminho,
É lançar para cima quanto diz
Que mais árvore é o tronco mais sozinho.

Ela dirá, palavra descoberta,
Os ditos do costume de viver:
Esta hora que aperta e desaperta,
O não ver, o não ter, o quase ser.



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SARAMAGO, José. Os poemas possíveis. 3a. ed. Lisboa: Caminho, 1981.