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"Deus quis este livro"

Que o leitor não espere de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" - o mais recente romance de José Saramago, a ser lançado no próximo dia 7 - excesso e imprecação. "O Evangelho" é um livro herético, mas contido, austero, como o tema exige. "É herético apenas porque propõe uma escolha diferente da habitual", diz o escritor. Um homem sereno, que não teme as reacções da Igreja Católica: "A Igreja já se habituou a ser discreta".

Saramago tem consciência de que este livro, se tivesse sido escrito até ao terceiro quartel do século XVIII, levaria o autor à fogueira. Porquê? Porque lá estão todas as inquietações que sempre afligiram o homem: Quem sou eu? Quem é Deus? Porque tenho de morrer? O que é o bem e o mal? É evidente que num evangelho assim não se encontram ideias feitas. Tudo ali é interrogação. E o próprio Jesus nos surge como um homem normal que não espera licença de Deus para pensar. Porque, como diz a um discípulo, se Ele nos deu pernas e nós não esperamos ordem para andar, também não devemos esperar ordem para pensar.

Este livro são vários livros, o que não é de espantar no autor de "O Ano da Morte de Ricardo Reis". É o livro das heterodoxias (por ele passam o maniqueísmo, o quietismo, os Irmãos do Livre Espírito); um livro mariano (não tanto porque valorize a personalidade da mãe de Jesus, mas porque enaltece a figura de Maria Madalena, ou Maria de Magdala, que com ele dorme e dele faz um adulto); um livro freudiano, de iniciação à vida e seus dramas (Jesus corta com a família de forma violenta). Um livro maldito (a educação de Jesus é entregue ao Diabo pelo próprio Deus).

"O Evangelho" passará a ser o livro dos livros de Saramago. Nele se concentram todas as obsessões do autor, a principal das quais é a do livre arbítrio do homem perante as forças que o oprimem. Por isso o romance incomoda ainda de forma suplementar: o Deus de Israel é um político desabusado e um tanto cínico que pretende aumentar o seu poder e que para esse fim utiliza os homens, todos os homens, incluindo o próprio filho. Que lhe resiste. Porque este filho tem a pouca sorte de ter dois pais, deles herdando as culpas. De José herda o remorso de um "crime por omissão": José salvou o filho da matança dos inocentes, mas não avisou as outras famílias que corriam o mesmo risco. De Deus, o pai celeste, herda a impotência essencial: não conseguir evitar a morte às suas criaturas. Assim, Jesus não ressuscita Lázaro, porque Maria de Magdala o avisa de que não há homem algum que tenha a pesar-lhe na consciência pecados tais que mereça morrer duas vezes. Jesus afasta-se para chorar...

Jesus não teve só dois pais; teve também duas mães. Maria, sua mãe biológica, e Maria de Magdala que tudo lhe ensinou: "Aprende o meu corpo"; "Aprende o teu corpo", sussurrou-lhe ela na primeira noite de amor, a primeira de uma longa série. É esta humanização de Jesus que eleva o livro e eleva o próprio Jesus. Que num último movimento de revolta tenta escapar aos ditames políticos do Deus-Pai e se faz condenar como Rei dos Judeus, como Filho do Homem, e não como Filho de Deus. Assim, seria poupada à humanidade uma série de catástrofes que a nova religião iria causar. Por isso, mais doloroso do que o grito de Jesus na cruz, "Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez", é essa outra pergunta que Jesus-menino faz no "segredo do seu coração": "Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens."

Tem consciência de que este livro se fosse escrito até meados do século XVIII, autor e livro seriam queimados?

Bom, seriam com certeza. O livro não se queixaria muito, mas o autor que teria de passar um mau bocado.

Este livro é um livro de adolescência e de crescimento. É como se a história de Jesus fosse a história de um homem normal, a história de uma criança, de um adolescente que enfrenta o mundo, o poder, a família.

Deve ser visto assim. Pode-se estranhar, tendo em conta o modo como está organizada a vida de Jesus nos Evangelhos, que eu tenha dado tanta importância justamente à infância e à adolescência...

Que são as fases menos conhecidas da vida de Jesus...

São as fases praticamente desconhecidas. Mas não podemos andar sempre a dizer, sem tirar daí todas as consequências, que o mais importante na vida de um ser humano é a infância e a adolescência. É justamente esse Jesus que me interessa mais, não só por uma razão puramente economicista de preencher o espaço que nos Evangelhos é deixado praticamente vazio, mas também para tratar desde o princípio a relação que Jesus estabelece com Deus. Não tanto saber se Jesus é filho de Deus, ou como é que é filho ou até que ponto é filho. O que me interessa, e isso começa a ser definido desde logo, desde a infância e pela a adolescência dentro, é a relação que ele tem com Deus. Comparativamente, o fim da vida de Jesus ocupa, no meu livro, um espaço bastante reduzido. A parte substancial é a infância e a adolescência, embora no que se refere a conclusões a tirar, se algumas se tiram, é nas páginas finais que as encontramos. Tudo se ata então num nó a que apetece chamar górdio, porque não tem solução.

Precisamente. Encontro, no seu Evangelho, sinais óbvios de algumas heterodoxias: o maniqueísmo, o quietismo, e para mim a mais fascinante de todas: uma espécie de revolta contra o pai, contra Deus, revolta contra o poder, a que se chamou, na Idade Média, os Irmãos do Livre Espírito. Mas o quietismo do seu livro decorre desse nó górdio. Isto é, Cristo rebelou-se contra a família e contra Deus. Depois tenta solucionar o problema pela astúcia. Mas quando chega ao fim, percebe que foi um joguete, um títere de Deus. Deus é o poder? Parece que estamos sempre dentro dele, que não conseguimos livrar-nos dele. Não se pode concluir que mais vale ficar parado?

O poder está aí e nós não podemos libertarmo-nos dele. O que podemos e devemos é rebelar-nos constantemente contra ele. E aqui estabeleço uma relação entre dois livros que afinal de contas parece que não têm nada que ver um com o outro, mas que são sucessivos no tempo: a "História do Cerco de Lisboa" e "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". O que o revisor escreve no primeiro é o "não" que se opõe à chamada verdade histórica oficial. Ele diz "não", e a partir daí tem que inventar outra coisa. É certo que o "não" inevitavelmente acaba por converter-se em "sim". Converte-se porque parece que não se pode fugir a isso, mas tem de acontecer outro "não" e sucessivos "nãos" que se transformam em "sim". É uma cadeia que não sei se parará alguma vez.

Mas este livro é mais radical nisso, porque Jesus, quando tenta a última astúcia contra Deus, percebe antes de morrer que falhou. Há um sentimento de derrota.

Uma derrota total. Jesus é vencido, tem a consciência de que foi vencido e o livro parece que fecha dessa maneira. É realmente um nó górdio que não pode ser desatado porque sempre o poder se imporá. Neste caso é Deus, mas podia ser o poder civil ou militar. É um poder que tem a força, que determina, que condiciona e que empurra cada um de nós e todos juntos para um determinado fim que é servi-lo. É o que acontece a Jesus. Jesus está ali para servir o poder de Deus e para ser o instrumento, digamos a vítima sacrificial, do alargamento do poder de Deus a outras gentes e a outras terras. No fundo, trata-se, no caso de Deus, de alargar o seu espaço vital, a sua área de influência. Mas há um personagem de que ainda não falamos mas que tem que ser mencionado: o Diabo.

Aí entra o maniqueísmo: se o bem alastra, o mal também. E não se sabe o que é o mal e o que é o bem.

Suponho - suponho apenas - que a maneira de desatar este nó górdio é a a interrogação sistemática, por uma espécie de imposição interior, interrogar sempre mas interrogar no sentido da contestação. Interrogar primeiro no sentido da necessidade da compreensão - pois só se chega à compreensão pela interrogação - mas também no da contestação. Atitude constante ao longo do livro, venha de onde vier: de Jesus, do Diabo. Jesus, quando tem 13 anos, vai ao templo para saber o que é a culpa, e lá se encontram mais dois judeus a interrogar o escriba sobre questões que no fundo são afins. Chegaríamos então à terceira heresia, que é o uso da nossa razão. Jesus usa a razão para obrigar Deus a revelar o futuro da religião que vai ser fundada sobre o sacrifício dele. Mas não pode ir mais longe e quando nessa pequena astúcia final, quase infantil, em que julga poder escapar por esse artifício, esse subterfúgio, esse...

Afirmar-se apenas como homem e dizer "eu sou o Rei dos Judeus", e não "sou o filho de Deus".

Mesmo isso falha porque já estava previsto. Então a única solução para nos soltarmos do nó górdio é não pensar que a razão em cada momento nos dá a resposta definitiva. Não há nada definitivo, é constantemente perguntar, constantemente contestar. É a margem de liberdade que nos resta como seres humanos na relação com o poder, neste caso o poder de Deus, e com todo o poder.

Essa atitude tem alguma coisa a ver com a sua experiência pessoal em relação ao falhanço do comunismo?

No que se refere à minha própria vivência política e ideológica, se há alguma coisa de que me recrimino hoje é talvez - ainda me dou o beneficio da dúvida - ter interrogado menos do que devia, ter contestado menos do que devia e ter exigido menos do que devia. Se não fosse essa circunstância - que não afecta nem retira nada do que é essencial na relação que mantenho com essa vivência, com essa ideologia - talvez eu não tivesse sido capaz de ir tão longe. Suponho que fui longe. Mas esta minha costela interrogativa e exigente é coisa antiga que se tornou muito mais clara e definida neste livro. Concordo consigo nesse paralelo, nessa coincidência, nesse cruzamento possível. Tem razão.

Este livro são muitos livros.

Tudo são muitas coisas.

Este "Evangelho" é também um livro mariano, não no sentido da recuperação da figura de Maria, que é uma mãe provável e plausível, com as dúvidas todas que uma mãe tem quando um adolescente chega a casa com novidades, e Jesus trazia muitas novidades para casa. Mas é um livro mariano pela grande força que a mulher traz para a experiência de Jesus. Um rapaz com dois pais e, como se já não lhe chegasse essa desgraça, também tem duas mães: Maria e a segunda Maria, Maria Madalena, ou de Magdala, a amante que a certa altura o trata por filho.

Devo confessar-lhe que estava para mim muito claro que Jesus teve dois pais . Mas ter duas mães é qualquer coisa que se me apresentou agora com uma nitidez completa depois de você me ter chamado a atenção para isso. Porque de uma certa maneira Jesus tem efectivamente duas mães. Teve que nascer duas vezes.

E a mãe natural percebe isso muito claramente.

Ela percebe isso claramente quando tem o encontro com Maria de Magdala nas bodas de Canaã. Reconhece então que o seu tempo chegou ao fim e entrega Jesus a essa outra mulher que é ao mesmo tempo amante, mulher no sentido de companheira se se quiser, e mãe. A certa altura, talvez sem eu saber muito bem porquê, levei Maria de Magdala a chamar-lhe filho.

Ela chama-lhe filho e ele não precisa de lhe chamar mãe, é uma coisa tácita entre eles.

A aprendizagem que Jesus faz com o pastor de um grande rebanho, que é o Diabo - um grande rebanho, em que os animais as ovelhas, os carneiros, as cabras e os bodes apenas morrem de morte natural, é um rebanho que vai crescendo constantemente. E não se diga que é o rebanho do mal, seria demasiado fácil. É o rebanho da vida, de uma certa forma de vida livre sem sujeições nem teias que o Diabo se limita a conduzir sem interferir. É o coordenador, é o que mantém aquele rebanho reunido -, essa aprendizagem mostra-se inacabada. O próprio Diabo lhe diz "não aprendeste nada, tens que voltar ao princípio". É que Jesus recusara sacrificar um cordeiro a Deus, mas não resistira a sacrifica-lo noutra altura, quando o cordeiro já era uma ovelha

Ora a aprendizagem é recomeçada com a mulher.

A mulher. A primeira mulher que ele encontra, uma prostituta, uma marginal - e que no momento em que o encontra deixa de ser a prostituta - é necessária a Jesus.

Há outra vertente: a das relações que Jesus estabeleceu com a família, com o próprio pai. O pecado que o pai terreno cometeu - José não avisou as outras famílias da matança das crianças por Herodes - não o largou até muito tarde.

Eu não lhe chamaria pecado. Iria mais longe. Chamar-lhe-ia crime por omissão.

A relação que ele estabelece com a família terrena é complicada, freudiana. Tanto com o pai do céu, como com o pai da terra, e com a mãe.

Não é nada que eu tenha inventado para tornar mais conflitivo o conflito. É qualquer coisa que decorre muito simplesmente da leitura dos próprios Evangelhos. A má relação de Jesus com os seus é clara, está lá, é explicita. Nenhuma razão é dada para isso. Pelo menos nos Evangelhos não há nenhum indicio, mínimo que seja, que nos leve a compreender porque é que ele não quer aquela família. Porque dizer que minha mãe, meu pai e meus irmãos são aqueles que me seguem, é a rejeição formal, explícita e pública de qualquer relação familiar.

Há alturas em que o Deus de Israel, que é o Deus da guerra, um Deus terrível e violento, se humaniza. Humaniza-se no sentido em que é um político.

Isso tem uma espécie de eco final quando Pilatos é posto perante a necessidade de julgar o Filho do Homem e o sacerdote lhe diz: "Para nós Filho do Homem e Deus é a mesma coisa". Ele diz, bem, isso a mim, não me interessa. Se se tratasse dos meus deuses com quem isso acontece constantemente, enfim, podia-me interessar, neste caso não interessa nada. Este Deus de facto é uma segunda vida de Deus, se se pode falar assim, ou deixa de ser o Deus...

Esse Deus dos Exércitos, esse Deus, digamos, das guerras, esse Deus que de uma certa maneira, como os deuses gregos, combatia ao lado do seu povo escolhido, eleito - como Minerva, estou a lembrar-me do cerco de Tróia em que os deuses combatiam ao lado do Heitor, do Aquiles, do Ajax -, este Deus, Jeová, vai deixar de ser isso porque entendeu, como político astuto que é, que se a guerra é a política conduzida por outros meios, a pode conduzir sem ela. Ele entende que o caminho é outro e que ele vai servir-se de um outro meio para deixar de ser o pequeno deus que é, de uma pequena região e de um povo pequeno, para ser, se possível, católico, se possível universal. E para isso aceita todos os arranjos e conciliações. A verdade é que há um acordo profundo - embora também seja duvidoso que esta seja a palavra justa - entre Deus e o Diabo. Não podemos esquecer que a educação prática de Jesus é feita pelo Diabo. E Deus sabe-o. E o que é mais singular - encontramos isso nos Evangelhos - é que a primeira entidade que declara publicamente Jesus filho de Deus é num encontro com o possesso Gadareno, aquele que tinha dentro de si tantos demónios que se chamava Legião. São esses demónios que o saúdam, melhor, que lhe pedem: "Não nos tortures filho do Altíssimo". Até aí ninguém tinha falado em Jesus como filho de Deus.

Há quase três deuses aqui: Deus, Cristo e um terceiro Deus. Você já disse que não encontrava narrador nas suas obras, mas há aqui um terceiro Deus, que é o narrador ou o autor. De vez em quando interrompe a narração, aliás numa técnica muito camiliana...

Sim, sim...

...com uma grande ironia, desmontando a seriedade de alguns discursos, tanto das personagens como dele próprio, narrador. Há ali omnipotência, do autor ou do narrador, nessa interferência na acção. Estamos a falar do poder da palavra, do verbo, num tema bíblico...

A velhíssima questão do narrador omnisciente. Quando se fala dos meus livros, sempre se refere: "o seu narrador". Do ponto de vista técnico aceito que me separem a mim, autor, dessa entidade que está por lá que é o narrador. Também não vale a pena dizer que o narrador é uma espécie de "alter ego" meu. Eu iria talvez mais longe, e provavelmente com indignação de todos teóricos da literatura, afirmaria: "Narrador, não sei quem é". Parece-me, e sou leigo na matéria, que no meu caso particular - e creio ter encontrado uma fórmula que acho feliz para expressar isso - é como se eu estivesse a dizer ao leitor: "Vai aí o livro, mas esse livro leva uma pessoa dentro". Leva uma história, leva a história que se conta, leva a história das personagens, leva a tese, a filosofia, enfim, tudo o que se quiser encontrar lá. Mas além de tudo isso leva uma pessoa dentro, que é o autor. Não é o narrador. Eu não sei quem é o narrador, ou só o sei se o identificar com a pessoa que eu sou.

O meu narrador não é o narrador realista, que está lá para contar o que aconteceu, sendo guiado pelo autor que por sua vez se mantém distante. Pelo contrário. Aquilo que procuro - embora sem saber muito bem que o faço, se calhar vou compreendendo que andava à procura depois de ter chegado - é uma fusão do autor, do narrador, da história que é contada, das personagens, do tempo em que eu vivo, do tempo em que se passam todas essas coisas, um discurso globalizante em que cada um destes elementos tem uma parte igual. Porque de certa maneira, Jesus não é mais importante neste livro do que outras personagens...

Chega a afirmar no "Evangelho" que está a contar a história de Jesus, mas podia estar a contar a história de qualquer rapaz da Galileia".

Podia chamar-se Jesus, podia até ser filho de outro José e de outra Maria. Uma ideia minha, que expresso de maneira nada científica, que o tempo não é sucessão diacrónica, em que um acontecimento vem atrás de outro; o que acontece projecta-se numa imensa tela e tudo fica ao lado de tudo. Como se o homem de Cromagnon estivesse colocado nessa tela ao lado do "David" de Miguel Ângelo. Para o autor não há passado nem futuro. O que vai ser já está a acontecer. Para este autor, ao escrever estes livros, as coisas passam-se assim.

Eça de Queiroz tentou uma Vida de Cristo, nas "Prosas Bárbaras".

A própria "Relíquia" é a Paixão de Cristo

Mas Eça é positivista, baseia-se em Renan. O seu "Evangelho" não participa do positivismo.

Tenho uma visão não positivista do Cristianismo. Sou capaz de me atrever a uma firmação ousada, há muita gente que não vai gostar dela: não seríamos muito diferentes daquilo que somos se continuássemos com a velha religião dos romanos, se andassem ainda por aí Minerva, Júpiter, Vénus. O Cristianismo, para além daquilo que trouxe - e trouxe coisas belíssimas, tenho ali a "Paixão Segundo S. Mateus", de J. S. Bach - deu lugar a uma arte que atingiu as mais excelsas alturas, na pintura, na música, na poesia, na arquitectura, na escultura. Produziu tipos humanos admiráveis, um S. Francisco de Assis. Mas há o outro lado da balança: o sangue, o sofrimento, a angústia, a renúncia, o pecado. É uma religião de onde a alegria está ausente, ou então há um certo tipo de alegria que não passa pelo humano, pelo corpo.

O seu Jesus conheceu essa alegria do corpo. É por isso que ele se revolta contra Deus.

Ele teve o conhecimento do seu próprio corpo, lembre-se do encontro dele com Maria de Magdala. Há duas frases dela absolutamente necessárias: "Aprende o teu corpo"; e depois, "Aprende o meu corpo". O cristianismo recusa o corpo, recusa o invólucro necessário.

Vivemos num país profundamente católico - ainda o é...

... tenho algumas dúvidas, tenho algumas dúvidas sobre o catolicismo da nossa gente...

... não o catolicismo no sentido absoluto do termo, da Reforma. Mas Portugal é um país mais católico do que outros. Deus existe em mais cabeças do que em França, por exemplo. Que reacção é que acha que este livro vai ter nessas cabeças? Alguns dos grandes escritores portugueses (alguns deles tentaram reformar o país, é o caso do Eça de Queiroz, nas "Prosas Bárbaras" e depois na "Relíquia") que ensaiaram este tema...

... e até o Fernando Pessoa, peguemos no "Guardador de Rebanhos".

Precisamente. O José Saramago entra numa tradição de criadores que estabelecem algumas distâncias em relação à religião (no caso do Pessoa é uma distanciação individual e pessoal mas existia; no caso do Eça era filosófica; no de Herculano foi duro porque a igreja tocou a rebate...), mas não se alheiam da temática crística. Que reacções pensa que vão ser as da Igreja?

A Igreja aprendeu a ser discreta nas suas expressões de desagrado. Já sabemos que não queima ninguém, evidentemente. Sou baptizado, é verdade, mas também foi o único sacramento que me caiu em cima. Tecnicamente posso ser excomungado é um facto, mas apenas tecnicamente. Não penso que a Igreja caia no ridículo de me excomungar, nem espero uma nota do Conselho Episcopal ou do Patriarcado. E quando digo que não espero, quero dizer que desejo que não aconteça para que as coisas não caiam naquilo que pelo menos a mim me pareceria ridículo. A Igreja não cairá com este "Evangelho", este "Evangelho" é um romance, nada mais. Um romance que se atreve muito, um livro honesto, um livro limpo, que vai com certeza confundir muita gente, que vai indignar também não pouca gente, há pessoas que vão sentir-se chocadas porque fui longe de mais ou que nem sequer me devia ter atrevido. De Cristo, de Deus e de Maria não se pode fazer nada que não seja pura edificação - não é nesse plano que eu me coloco, é evidente, é noutro. É possível que a Igreja mande alguns dos seus emissários escrever artigos contra mim, desqualificando o livro, desqualificando-me a mim, por exemplo, com ser moral, coisas deste género, pode acontecer tudo isso. Mas a minha posição, se isso acontecer, será de perfeita serenidade.

Se alguma coisa eu gostaria que acontecesse era que crentes e não crentes que lerem este livro dele tirem apenas esta ideia: é preciso pensar nestas coisas a sério. Quer do ponto de vista do crente, quer do ponto de vista do não crente. Pensar nelas a sério, interrogá-las. Porque não há nada de definitivo neste mundo. Este planeta onde vivemos é coisa nenhuma. As próprias religiões têm pouca importância. Têm importância para nós porque se traduzem em normas de vida, em ideologia, em cultura. Mas não mais, porque nós próprios também não temos muita.

Se a religião é aquilo que liga, não será você um espírito religioso?

Sou um espírito profundamente religioso. E digo-lhe, usando um pouco da minha ironia habitual, que é preciso ter-se um altíssimo grau de religiosidade para fazer uma ateu como eu. No sentido etimológico de religião, tomada como aquilo que liga, o que sinto é essa grande ligação a tudo, àquilo que está aqui à mão, que somos nós, ao que nos rodeia, esta terra pequena que é a nossa terra, a outra maior, o continente, o globo.

A coisas simples, também, à pedra...

... sim, sim, sim, as pedras aparecem constantemente nos meus livros. Se há qualquer coisa que me irrita profundamente em relação a ter de morrer um dia, é que vou daqui sem perceber nada disto. E quando digo sem perceber nada disto... Enfim, perceber isto aqui onde estamos já é difícil mas - eu sei que vou dizer uma banalidade terrível - sem perceber o universo. Irrita-me no plano intelectual ter falhado o momento da explicação do universo, irrita-me! Ousei este livro e não tenho nenhum conflito com Deus, não o escrevi para resolver qualquer crise minha. Resolvi fazê-lo...

Acha que podia acontecer o contrário agora, quer dizer, o conflito aparecer depois da escrita do livro?

Não creio. Mas há duas palavras que não se podem usar: uma é sempre outra é nunca. Não sei o que me acontecerá. Sei que aconteceu a outros, súbitas revelações, sou humano, estou sujeito também a uma coisa dessas. Uma revelação - pondo entre aspas - já eu tive. Este livro nasceu de uma ilusão de óptica, ocorrida em Sevilha, em Maio de 1947, quando eu, atravessando uma rua em direcção a um quiosque de jornais que se encontrava do outro lado, e graças aos meus péssimos olhos - porque seu tivesse uma visão perfeita teria visto só aquilo que lá estava - li nitidamente: "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Segui, não ligando muito. Parei um pouco adiante e disse para mim: "Não posso ter lido aquilo que li". Voltei atrás para certificar-me efectivamente de que efectivamente não estava lá nada: nem Evangelho, nem Jesus, nem Cristo e muito menos em Português. Depois estas coisas crescem, crescem dentro de nós, convertem-se em livros, de 450 páginas, como este.

Em tempos menos positivistas, que seriam os que o José Saramago descreve no "Evangelho", teria sido um milagre.

Não tanto um milagre, mas uma revelação. Indo um pouco mais longe - e parece-me uma boa conclusão para esta entrevista -, se assim foi então Deus quis este livro.