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Esfíngico, magro, sereno. José Saramago nunca sorri durante a entrevista, nem fora dela. Concentrado nas palavras, fala quase como escreve e a conversa vai escorrendo com o comunista que não abdica das suas convicções mesmo que, aqui e ali, como reconhece, alguns dos responsáveis pela sua utopia política teimem em dar-lhe motivos de desgosto.

Desgosto é também o que sente em relação ao País político que quis estigmatizar o 'Memorial do Convento' e o levou a mudar de "bairro", trocando Lisboa por Lanzarote. Assinala que "o senhor Cavaco Silva" nunca lhe pediu desculpa - e agora, quase a completar 85 anos, também já não quer que o faça.

Vamos começar esta entrevista pelo rescaldo de uma outra, que concedeu no Verão ao Diário de Notícias, na qual previa que Portugal poderia integrar-se naturalmente na Espanha, dando origem à Ibéria. Sabe a polémica que isso causou, tanto em Portugal como em Espanha. Mantém hoje essa provocação?

Vamos lá ver... Em primeiro lugar, não se trata de andar a fazer provocações gratuitas só para vender papel ou só para que se fale no meu nome, para bem ou para mal e geralmente é para mal. Não tem que ver com isso. Simplesmente tem que ver com um sentido histórico, e que eu admito até que não seja totalmente correcto. E isto não é de agora, nem é por eu ter ido viver para Espanha, para as Canárias. O que eu tenho, e alimento desde há muito, é uma espécie de sentimento ibérico, que eu até expressava quando se falava na integração, essa sim, de Portugal na Comunidade Europeia, no Mercado Comum... Essa, sim, de integração se pode falar. Bom, em primeiro lugar sou português. Em segundo lugar sou ibérico. E em terceiro lugar, se me apetece, serei europeu. Isso é uma percepção que eu tenho, embora sejamos dois países independentes e separados e com graves problemas de convivência (agora menos). De todo o modo, o que não se pode negar é que estamos aqui. Eles e nós. E se é certo que não se faz integrações ou desintegrações tão-só porque de repente passou isso pela cabeça, há algo que eu peço a um político e aos cidadãos em geral: pensem nos destinos do seu país, no grau de dependência a que estamos a chegar, e cada vez mais. Eu simbolizo isso num episódio interessante, em que eu não sou parte activa mas em que posso citar o nome da pessoa que o foi... Quando se falava muita na entrada de Portugal na Europa e na perda de autonomia, João de Deus Pinheiro, naquela altura ministro dos Negócios Estrangeiros, e portanto muito dentro da negociação, numa entrevista que deu, quando lhe puseram a pergunta "não lhe parece que vamos ter uma perda de soberania?", respondeu e com ar risonho: "Ah, a soberania, a soberania... No século XIX, um Governo português não chegou a tomar posse porque o almirante da esquadra britânica fundeada no Tejo o impediu..." Realmente é assim, se nós contássemos a história que está por detrás da história e em que aparecem episódios quase grotescos como este...

Mas Portugal e Espanha têm uma história conhecida e sendo vizinhos têm uma história...

E Portugal e a Grã-Bretanha também têm uma história...

Sim, mas, como não fazem fronteira, têm um relacionamento diferente. Acha que não faz sentido nenhum a ideia que existe em Portugal de que uma junção com Espanha seria a total perda de autonomia do País?

A mim não me parece... E eu aconselharia a ter muito cuidado com o uso das palavras "perda de autonomia". Agora mesmo há este problema do BCP e do BPI. O "La Caixa", da Catalunha, propõe-se entrar neste negócio e pode ser que acabe por comprar o BCP. E se isso acontecer, a banca espanhola será proprietária de 60 por cento da banca portuguesa.

Portanto desse ponto vista económico, a sua Ibéria está a ser uma realidade?

Não é a minha Ibéria!

A ideia de os dois países caminharem juntos economicamente começa a ser uma realidade?

Evidentemente que a economia espanhola vai a léguas de distância da nossa. Mas a questão não é essa. Eu iria um pouco mais longe: a criação de um novo país. E isso não nos tirava nada daquilo que somos!

Mas é normal falar na Ibéria quando está aí a União Europeia a 27, e quando se fala da Europa das regiões?

Repare, a Europa a 27 é uma dor de cabeça tremenda. E vai sendo sucessivamente adiada a aspirina que há-de resolver aquilo. Quis a sorte, ou quiseram as circunstâncias, que o eleitorado polaco decidisse de repente desviar o rumo. Mas outras Polónias são possíveis na Europa. Além disso, a Europa não existe. Existem Europas sucessivas historicamente que vão mudando de cara, de dono, ou de força predominante. Essas são as Europas. Não aquilo a que possamos chamar fisicamente uma Europa.

Mas essa Europa de que está a falar é também ela uma utopia.

Não é uma utopia, é uma ideia generosa. Conseguir a paz dentro deste continente não era pequena coisa. E, pelo menos, isso conseguiu-se até agora. Não sabemos o que é que será o dia de amanhã com um Putin completamente lançado numa espécie de neoimperialismo. Porque como ele não pode expandir-se muito, tem de começar pela sua própria casa. Há uma fascinação imperial na Rússia que é histórica e não sabemos como é que se vai equilibrar isso numa relação com um grupo como a União Europeia.

Quando falou no caso polaco está a pôr a possibilidade de este acordo sobre o Tratado conseguido em Lisboa há poucos dias não vir a ser ratificado?

Não, eu não penso isso, mesmo com os irmãos gémeos, eles [os polacos] não teriam outro remédio senão ratificá-lo. De outro modo, seria colocarem-se fora e criava-se uma situação muito complicada .

Voltava à ideia de um novo país, de uma Ibéria. Essa Ibéria - que juntava Portugal e Espanha - seria dentro da Europa, ou seria uma Ibéria mais ligada à Jangada de Pedra, que se separava da Península aproximando--se de outros dois continentes historicamente ligados a Portugal e Espanha?

A separação física da Europa [na Jangada de Pedra] é uma pura metáfora, que nem sequer era muito arriscada, porque, a partir do momento em que algo que se pretende expressar metaforicamente é completamente impossível, o melhor é não perder demasiado tempo com isso a ver quais são as intenções que estão por detrás. [No livro, o que está em causa] Não é efectivamente separar a Península Ibérica da Europa, é saber o que é que podemos fazer noutro lugar. E esse outro lugar era o Sul. Era uma espécie de proposta de justiça histórica.

Quando fala desta Ibéria, 20 anos depois, sente-a dentro da Europa ou nessa missão mais virada para o Sul?

Penso que não valerá a pena cair nessa dicotomia de "ou isto ou aquilo". É "isto e aquilo", na Europa como estamos! Mas também com outras possibilidades de trabalho que contemplavam exactamente a parte de África e a parte daquilo a que eu chamo a América do Sul e que as pessoas insistem em chamar Latino-América e Ibero-América. Acho até que se devia examinar seriamente essa questão. Um índio mapuche é latino-americano? Em nome de quê lhe chamamos latino-americano? Há um abuso de linguagem. Há uma espécie de nostalgia colonialista. Na verdade eles têm a independência, mas aquilo deve chamar-se América Latina. Porquê? Um quetchua sente-se latino-americano? Em quê, porquê? Eles têm uma cultura própria, idioma próprio, tiveram religiões próprias, tudo isso era a sua própria civilização. Nós chegámos lá e fizemos tudo em fanicos e, além disso, impusemos- -lhes que eles não são isto ou aquilo porque são latino-americanos. Aí está um bom tema para a comunicação social.

Deixemos a sua utopia da Ibéria fazer percurso, o percurso que tiver de fazer. Que relação mantém com Portugal?

Toda. Embora haja uma parte de Portugal que não me suporta...

Sente isso?

Sim.

De que forma?

Eu não me refiro ao povo português, que por um lado é uma abstracção e por outro algo real. Tenho muitos leitores aqui desde sempre. As pessoas estimam-me.

O que é que lhe dizem na rua?

Essa fase já passou, entrou-se numa fase de normalidade... Nunca me insultaram. Nunca ninguém me disse que sou um traidor à Pátria. Quando tive problemas de saúde, as pessoas diziam-me "então como é que vai, olhe que precisamos de si". Mas há uma área do Poder que realmente não me suporta, e vocês sabem. Mas eu não confundo uma coisa com a outra. Aqui há um bom par de anos, numa série de perguntas que me fizeram em relação a essa questão da minha relação com o País, eu dizia: "Gosto do que este País fez de mim." Não se pode dizer mais.

No entanto isso não foi capaz de o segurar aqui quando teve os problemas com...

[Interrompendo]... E porque é que me havia de segurar? Então eu publico um livro, esse livro é censurado e eu encaixo? Se eu tinha a possibilidade de protestar, e eu protestei de todas as maneiras - o caso do Evangelho Segundo Jesus Cristo chegou à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu... Casualmente, naquela altura, [descubro que] a Pilar [a mulher] tem uma irmã a viver em Lanzarote há uma quantidade de anos. Eu estava indignadíssimo e pedia por favor que me ajudassem contra um Governo inteiro que começava no senhor Cavaco Silva e acabava no senhor Sousa Lara, todos contra um escritor, censurando um livro. E eu perguntei-me: "O que é isto?" No tempo do fascismo era normal, sabíamos que podia acontecer e acontecia. Mas agora, em democracia, um senhor permitir-se dizer que este livro não pode representar Portugal porque ofende a consciência dos católicos portugueses?! O que é isto?! Desde quando é que um Governo é o defensor ou o arauto da consciência política dos católicos ou não católicos? E então nessa altura, quando andávamos à procura de uma casa para viver aqui nos arredores, mais tranquilamente, acabámos por ir para mais longe, para Lanzarote, onde a Pilar tem essa irmã a viver há 30 anos com o marido arquitecto. Mas nunca deixei de ter uma casa aqui. Eu pago os meus impostos aqui, com grande indignação das Finanças espanholas, que me puseram um processo. Querem que eu pague, e eu digo que não pago duas vezes.

Tendo optado por Espanha...

Não ponha as coisas assim. Eu mudei de bairro...

Tendo mudado, então, de bairro... como é que se vive hoje na Espanha de Zapatero?

Eu acho que se vive bem. A Espanha sempre foi um país complicado. E, quando parecia que não era, vivia sob a pata do fascismo. Todo este alarido que se levantou aqui com a possibilidade de um dia, não sei quando, e nem sequer sei se, de Portugal se poder juntar a Espanha para a criação de um país novo, isso está latente. Em Espanha, a Galiza, a Andaluzia, a Catalunha, o País Basco, tudo isso se move numa espécie de movimento centrífugo, mas que não acredita muito em si mesmo. Toda a gente fala de independência, mas no fundo não creio que a Catalunha queira ser independente. Isso é muito caro e os catalães sabem fazer bem contas. O que eles querem é um grau de autonomia levado até onde possa ser. Ter um país a que podem chamar seu.

A monarquia em Espanha começa a ser contestada. Acha que há futuro para ela, depois do Rei Juan Carlos?

Não é a monarquia que começa a ser contestada. Quando três ou quatro vagabundos decidem queimar fotografias, isso não é contestação. Imaginem que eu saio daqui e queimo a fotografia do senhor Cavaco Silva como expressão da autoridade política...

Votou nas presidenciais em Portugal?

Creio que não estava sequer perto. Não votei. Mas se estivesse aqui não votaria no senhor Cavaco Silva. Ele era o primeiro-ministro do Governo que me censurou. E não teve a esse respeito uma só palavra. Faz de conta que não aconteceu nada. É uma tendência muito nossa. Pedir desculpa, isso é que não.

Está por fazer esse pedido?

Sim, mas não o farão. E nem quero que o façam.

Gostaríamos também de falar consigo sobre o mundo, os seus líderes, e as ideias que aí circulam, para além da Ibéria. Há pouco, de passagem no seu discurso, surgiu o nome de Putin, que esteve em Lisboa até há umas horas, na cimeira com a União Europeia. O que é que lhe diz o nome do líder desse espaço que outrora foi da União Soviética?

Quando um oficial do KGB se torna senhor de um país é difícil que deixe de ser do KGB. Quem está no poder na Rússia é o KGB, e isso é claríssimo. Será o KGB a decidir quem será o próximo presidente da Rússia. Tudo é cozinhado entre amigos. São eles, digamos, os senhores da Rússia, evidentemente compaginando com a presença ofensiva e dramática das mafias, e não sei até que ponto algumas delas não serão instrumento do próprio poder político. A política, sobretudo quando se chega a estas alturas, a estes níveis, torna-se sórdida, perfeitamente sórdida. E não estou só a falar da Rússia, poderia falar de outros países e de algumas situações absolutamente incompreensíveis para qualquer espírito lógico, minimamente lógico. Estou a olhar para a China. Ter de dizer que aquilo é um país comunista... Toda a gente sabe que não, que é o capitalismo baixo, o mais duro, desde o século XVIII e fim do século XIX, que se inventou.

Como vê a evolução dos países que compunham a União Soviética? Tem saudades desse tempo da União Soviética?

Não, não tenho saudades nenhumas. Quem não conhece o meu passado, político e tudo isso, provavelmente imaginará que eu, desde há muitos anos, ano sim ano não pelo menos, fazia uma viagem à União Soviética. Não. Eu só fui à União Soviética em 1991 ou qualquer coisa que o valha, quando aquilo estava à beira, digamos, da transformação, com a chamada Glasnost. Portanto, não fui um fanático nem sequer nada que se aproximasse de um sovietista. Chamam-me, enfim, estalinista, porque nos meios de comunicação social internacional se encontram algumas mentes a dizer essa coisa.

Como olha para a figura de Estaline?

As figuras históricas têm de ser vistas tanto por trás como por diante. Uma figura histórica está sempre preocupada em dar uma imagem. Digamos que é fachada. E muitas vezes, até por uma espécie de tranquilidade, suposta tranquilidade, contentando-se com a imagem que a fachada dá. Toda a gente sabia que os processos de Moscovo, as purgas, os assassinatos selectivos, tudo isso aconteceu. Isso fez-me pensar, desde sempre.

O senhor conhece também razoavelmente a realidade da América Latina. O que pensa da actual deriva para a Esquerda nessa zona do mundo?

Estes movimentos de vai e vem são muito frequentes na História. Depois há que ponderar aí os interesses dos países, que os têm fortes, na América Latina. E que tiveram várias maneiras de intervir, digamos, na vida dos povos dessa América Latina. Sabemos que os Estados Unidos se deram por muito contentes com os Videlas e os Pinochets. Simplesmente, esse tempo dos Videlas e Pinochets passou. Já não são apostas seguras. E aí é que de repente vimos os Estados Unidos entusiasmados, não só com a sua própria democracia, mas também com a democracia dos outros, que lhes foi negada pelos próprios Estados Unidos, com a cumplicidade da célebre escola onde se ensinava e continua a ensinar-se os torturadores e as técnicas de interrogatório, de tortura. São, por assim dizer, uma carreira universitária. E nisso os Estados Unidos têm grandes responsabilidades. Mas agora o que convém mais neste momento é fazer a declaração formal, de que há que defender a democracia. Tudo isto parece bastante hipócrita. Em 1948, em Dezembro, assinou-se em Nova Iorque a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento notável, enfim, também um pouco ingénuo, mas que propunha mudar o mundo. No fundo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos substitui qualquer programa político de qualquer partido, por mais progressista que seja. A esse papel, hoje, ninguém liga importância. É papel molhado que não interessa a ninguém.

Mas acredita neste caminho que a América Latina está a percorrer?

Porque não hei-de acreditar? Tem os seus riscos, evidentemente. Mas viragem à esquerda o que significa? Em primeiro lugar, acaba por tornar- -se uma viragem à esquerda pela política que se aplicou e que se pretende aplicar. Mas por detrás, digamos, dessa viragem, que em princípio devia estar fundamentada em ideias, e muitas vezes as ideias faltam, há movimentos e simplesmente o conhecimento da justiça social. Chávez pode permitir-se ser mais dinâmico porque tem petróleo. Se não o tivesse, tinha de andar à procura de outras soluções. Mas tem petróleo e, portanto, usa-o, não só como elemento de desenvolvimento do país mas também como arma política.

Vamos virar a página e falar agora de livros. Está numa editora, a Caminho, que foi recentemente vendida a um empresário português, Miguel Paes do Amaral. O senhor é um crítico da globalização. Como é que viu esta concentração? Foi também pelo dinheiro que a sua participação [na Caminho] valia neste negócio?

Vamos lá ver. Ainda não se falava da globalização, nem sequer o termo existia e já se compravam e vendiam empresas. Até parece que estamos a assistir a alguma coisa de novo... Não, não estamos. Em primeiro lugar não é novo e, se se fala mais disso agora, é porque realmente é constante em todos os domínios económicos. Há 20 anos é que uma pessoa entrava numa empresa e ficava a trabalhar nela até ir para outro bairro. E as empresas passavam de mão em mão dentro da mesma família ou em função de alianças bem pensadas. Agora não é assim. Um conselho de administração chega tranquilamente ao seu escritório e encontra-se com uma OPA hostil.

Deu o seu consentimento a esse negócio...?

Não tinha de dar. Tinha de dar a minha opinião e achei que o negócio era bom. Vamos ver. O negócio editorial, que vocês conhecem, pelo menos de maneira lateral, é um equilíbrio em cima de um arame que constantemente ameaça partir-se. As empresas editoras até podem dar uma aparência de relativa prosperidade, que no fundo não corresponde a uma realidade muito sólida. No caso da Caminho, que durante 25 anos, pôde conquistar um espaço - e repare-se que não era nada fácil porque no fundo era a editora do Partido [Comunista Português], isso era uma espécie de selo de condenação social e que levava a que ninguém quisesse editar naquela casa. A editora era a editora dos escritores do Partido e publicava traduções. No campo português estava limitada. E é com um trabalho muito sério, muito respeitoso da autonomia dos autores e da sua dignidade pessoal e profissional que, sem alarde, sem publicidade, sem cheques dos que enchem o olho, a Caminho viu como as suas próprias portas, que nunca tinham estado fechadas, se iam abrindo. Escritores que nada tinham a ver com o Partido batiam à porta da Caminho. Por exemplo, a Sophia de Mello Breyner.

Com o dinheiro que já ganhou, ainda se considera um militante comunista ou já está elevado aquela condição em que estão muitos católicos, ou muitos dos que se dizem católicos, que dizem sê-lo mas nunca vão à missa?

Imagine que, depois de todo o dinheiro que eu ganhei, e uma parte conservo e outra parte renova- -se, o perdia todo. A pergunta é esta, uma vez que eu tinha perdido todo o dinheiro, é lógico que voltasse, se alguma vez tivesse saído delas, às minhas ideias comunistas uma vez que de repente era pobre. O que quero dizer é isto: se amanhã eu perdesse todo o meu dinheiro, na minha pessoa não mudaria rigorosamente nada. O facto de eu ter dinheiro significa só que um militante comunista, graças ao seu trabalho, que não roubou nada a ninguém, que não especulou, que não fez nada disso, escreveu e teve a sorte de encontrar leitores. Milhões de leitores. Deram-me o Prémio Nobel e não mudei nada. E não mudaria se a minha riqueza, digamos assim, duplicasse ou triplicasse. Eu continuaria a ser a pessoa que sou, com as mesmas ideias. Porque não posso pensar que, num futuro utópico, todos os habitantes do planeta tinham pelo menos o dinheiro que eu tenho. Seria bom. E que sistema? No sistema capitalista é duvidoso, no sistema comunista nunca aconteceu. De modo que a questão é esta: não se trata de pôr de um lado as ideias deste tipo e pô-las em paralelo com a religião. Não tem nada que ver uma coisa com a outra. [O comunismo é] uma convicção política, e mesmo que me dê muitas decepções e frustrações - e a nós [comunistas] não nos têm faltado, externas e internas - teremos de engolir uma série de sapos em nome de princípios que se sabe que estão a ser atacados. E se alguém tem de os defender que esse alguém seja eu.

Dentro de dias vai completar 85 anos. Está a escrever um livro. Vai ser o último?

Não sei. Se a vida me der tempo, ou se a vida me dá tempo e não me tira as ideias da cabeça, pode ser que não seja o último. Mas, como alguma vez algum vai ter de ser um que foi o último, também pode acontecer que seja esse o último. A minha Viagem do Elefante pode realmente ser o último livro. E será publicado, se não acontecer nenhuma desgraça antes, no ano que vem.

E qual é a mensagem que esse livro pretenderá transmitir?

Não tem mensagem.

É um romance?

Nem sequer posso dizer que seja um romance. Conta uma história. Mas não exactamente nos mesmos termos em que se conta uma história com um personagem, determinado, que se apaixona ou não se apaixona por outro personagem.

Como está hoje o seu processo produtivo? Escreve duas páginas, três páginas, escreve menos do que escrevia?

Não, não escrevo menos. Até tenho uma boa tendência a escrever algo mais.

E isso é porquê?

Não sei porquê. Porque sai. Às vezes é assim. A relação com aquilo que estamos a fazer é bastante humoral. Quando digo humoral não significa que estou de bom humor ou mau humor. Não é nesse sentido. Pode haver com os livros uma espécie de relação que tinha de se estabelecer ao longo da escrita do livro mas que curiosamente se instalou imediatamente no momento em que eu me sentei a escrever. Senti-me ligado a esse livro como se o livro preexistisse. E não preexiste, evidentemente. Vou ter de completá-lo, mas agora numa relação diferente. Talvez porque o próprio livro também é diferente. No fundo, o livro poderia ser pensado ou interpretado como uma pergunta formada desta maneira: "O que é que andamos aqui a fazer?"

Pensa muitas vezes na morte nesta fase da vida?

É impossível não pensar. E de resto, muito recentemente, publiquei um livro chamado As Intermitências da Morte. É um livro divertidíssimo que pode levar até à gargalhada, o que parece um paradoxo total porque estou a falar da morte. E, repare, aquilo que me chateia - e vou usar esta palavra, o ouvinte me perdoará - não é exactamente a morte. Aquilo que profundamente me dói, e não posso fazer nada contra isso, é porque eu penso que a morte autêntica não tem que ver com esse momento em que uma pessoa passa de um estado ao outro, está vivo e está morto. É outra coisa que se resume desta maneira: "Tu estavas e agora já não estás." Isso é a morte.

Nunca pensa que a morte pode não ser o fim da existência?

Ah, isso, oxalá seja mesmo. Imagine que tínhamos de aguentar qualquer outro tipo de existência depois de morrermos. Já não bastava...

Podia ser diferente, podia ser melhor...

E o que significa ser melhor? Também para ser melhor do que isto não era preciso muito. Para mim é uma convicção absoluta que com o fim da vida acaba tudo. Tudo.

Já escreveu o testamento?

Tenho o meu testamento feito. Mas tenho de revê-lo, actualizar certas coisas, até porque agora deixo responsabilidades muito grandes, como a criação da Fundação que leva o meu nome. É preciso definir as competências e as responsabilidades das pessoas que em princípio, como é o caso da Pilar [a mulher, que presidirá à Fundação], vão continuar o trabalho que não é uma espécie de instituição levantada à glória de fulano tal. É uma instituição que quer ser útil.

Útil em que sectores da actividade humana?

A Fundação coloca como princípio, ou como guia da sua actividade futura, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não é uma fundação meramente literária para promover conferências, simpósios e congressos, e isto tudo dedicado à obra e à memória do criador. Temos uma preocupação fortíssima com as questões do meio ambiente. Na Universidade de Granada foi criada uma cátedra com o meu nome exactamente dedicada ao estudo das questões do meio ambiente, e do aquecimento global e de tudo o que está acontecer neste momento. Portanto, queremos sair do colete apertado da literatura para nos expandirmos.

E com que orçamento?

Bem, neste momento, isso está nos estatutos. Existiu uma importância, relativamente considerável, que é a base com que se criou a Fundação, que são 300 mil euros. E evidentemente que a Fundação procurará outras fontes de financiamento, sem sacrifício da sua independência. Isso nem pensar. Além disso, uma parte dos meus direitos será regularmente encaminhada para a Fundação.

Tem algum projecto concreto na cabeça?

Não, repare, nós praticamente ainda não existimos.

Mas tem alguma ideia?

Ideias são todas aquelas que caibam dentro desses 300 mil euros.

Mas não tem nenhuma ideia que quer ver materializada?

A primeira coisa em que vai ser materializada é uma grande exposição sobre o meu trabalho e a minha pessoa que se inaugurará no dia 23 de Novembro em Lanzarote e depois viajará pelo mundo, e eu espero que venha a Lisboa. Uma exposição bibliográfica, o que parece algo corrente, mas que difere do que se entende deste tipo de exposições e difere na sua modernidade. Difere pela modernidade uma vez que abre francamente o audiovisual à informática, em efeitos sonoros e de luz. Espero que façam desta exposição algo novo e realmente novo.

Costuma ler autores portugueses?

Alguns, aqueles de que gosto.

Em Portugal há dois autores que vendem muitos livros, Miguel Sousa Tavares e José Rodrigues dos Santos, que aliás têm em comum consigo o trabalho na área da informação [José Saramago foi director adjunto do Diário de Notícias]. Ambos acabam de apresentar as suas mais recentes obras. Já leu algum livro deles? Considera-os como autores...

[Interrompendo] Como poderia não os considerar como autores se eles o são?

Como autores de uma literatura maior...

Bem, essa discussão sobre o que deveria ser ou poderia ser uma literatura maior também nos levaria longe. Mas como eu não li realmente nenhum deles não posso ser efectivo juiz nesta matéria. Em todo o caso, não diria nunca que esses livros não têm méritos literários. Como não os li não posso confirmá-lo, mas não tenho dúvidas de que se possam encontrar ali méritos literários. Aquilo de que eu não gosto, e tenho direito a isso, é a operação de marketing, que essa não tem nada a ver com literatura. O que digo é que a forma de lançar os autores, estes autores, obedece a um marketing implacável.

Esse marketing não leva também os livros para mais leitores?

Não sei... Enfim, claro. Mas há uma boa parte do marketing que já está feito, através do contacto diário que estes autores têm com a gente que vê televisão. Aqueles autores entram em casa das pessoas todos os dias, quase sentam-se à mesa e comem com quem lá está. Isso é metade do marketing, que nem sequer custa dinheiro. Depois há a outra parte, que é a grande entrevista, completamente desproporcionada porque nem se sabe se as pessoas vão ler os livros. Mas com isto não estou a negar que da parte de um e de outro não haja méritos literários suficientes para que se justifique a sua carreira, e as suas publicações.

Como é que olha hoje para a sua vasta obra? Tem livros preferidos, livros de que não gosta? Quando olha para trás diz "não faria isto outra vez"?

Posso gostar um bocadinho menos de uns do que outros, mas tudo aquilo me custou trabalho.

Mas de qual é que gosta mais, olhando hoje para trás?

Não sei. Aqui também é uma questão de humor. Há ocasiões que tendemos mais para um tipo de livros. Mas considero importantes livros como Todos os Nomes, Ensaio sobre a Cegueira. A propósito, acabaram as filmagens [do Ensaio sobre a Cegueira, realizado por Fernando Meireles] e há dois dias o trailer do filme.

Se tivesse de eleger um livro, qual seria?

Com que fim?

Aquele de que gosta mais...

É muito difícil. Poderia dizer o Ano da Morte de Ricardo Reis ou o Memorial do Convento ou As Intermitências da Morte, que é um livro de que eu gosto muitíssimo.

Costuma reler os seus livros?

Não, nunca fiz isso assim. O que não significa que, uma vez ou outra, por alguma razão, não tenha folheado um livro procurando uma passagem determinada. Mas nunca para fazer uma leitura de A a Z.

Fonte: DN
18/06/2010.