+A +/- -A
A execução - romance de Júlio Moreira, Prelo Editora



Usemos as palavras do autor: "Não faltará (...) quem queira arranjar (a esta história) explicações anedóticas, particulares, referi-la a sociedades ou grupos limitados, a pessoas concretas, tentar descobrir semelhanças forçosamente fáceis, mas escusadas". Diante deste aviso liminar e do mais que o precede, o leitor fica avisado: o escopo é mais amplo, contempla um possível comportamento heróico do homem comum perante o homem hipertrofiado em tirania. E como nos é impedido procurar explicações particulares ou sociedades e grupos limitados, entendar-se que Júlio Moreira nos propõe uma alegoria. Contudo, não nos parece que seja esse o processo mais adequado de exposição de um conflito e sua resolução prática.

O autor põe em "cena", diante de um pano de fundo de cidade revoltada, o encontro fortuito de um estrangeiro não nomeado nem identificado e de um tirano fugido do seu palácio por força dessa mesma revolta. Tal encontro, se o que julgamos saber do procedimento dos tiranos não está longe da [atitude merecedora]¹ para os defender, para impedir até a sua fuga... Mas aceitemos o encontro, necessário, e não exijamos do autor uma história diferente daquela que se propôs contar.

Temos pois que o herói (assim deveremos designar, como personagem principal que é e como "descobridor" e "matador" do "dragão") deita a mão a um tirano desarmado e o leva consigo, movido por um impulso que se sobrepõe à sua vontade e aos conselhos da prudência. Fecha-o num armário de pensão e, após algumas hesitações e muitos preparativos, decide passeá-lo pelo país, metido numa jaula como um urso domesticado. Furtando-o ao castigo que os seus crimes mereciam, pretende, com a exibição pública, que tdos finalmente percebam "que nenhum homem detém outro poder que aquele que lhe consentem". Isto já Demóstenes (veja-se "Portugal na Balança da Europa", de Almeida Garret, p.1) por outras palavras nos ensinava: "Pois, se algum mal lhe acontecer a ele (Filipe da Macedónia), cedo vos fareis vós mesmos outro Filipe, se deste modo cuidais das coisas; pois nem aquele tanto por suas forças cresceu, quanto pela nossa negligência." Muito bem. Aplauda-se pois Júlio Moreira e a Demóstenes. Mas que fez o herói de "A execução" para que o tirano caísse? Nada. Limitou-se a apanhá-lo na queda como a um fruto podre que se desprende da árvore, e agora mostra-o a toda a gente e diz: "Vejam. Está podre. Reparem nas manchas, nos vermes. Vejam bem". Não quis Júlio Moreira que um qualquer comparsa da sua história dissesse estas palavras definitivas: "Já o sabíamos. E da sua podridão nos envenenámos nós. Por isso o derrubámos". Duma maneira ou doutra, a história acaba como tinha de acabar: o tirano é morto, linchado pela "populaça". E, para que tudo tenha uma aparência de legalidade, o relatório da autópsia declara que "não se encontraram sinais de violênca que justifiquem a morte". Ou muito nos enganamos, ou nesta "legalidade" se anuncia o dedo doutro tirano...

Essa é a história (se a não interpretámos mal) que Júlio Moreira escreveu. O leitor concluirá, segundo o livro, não segundo a crítica, como quiser e puder. Quanto a nós, umas poucas palavras mais. O estilo de Júlio Moreira não serve eficazmente a narrativa. É intumescido, barroco, por vezes verborreico, roçando o mau gosto e o lugar-comum. De longe, uma notação exacta, rigorosa, que cinge com justeza o momento e a situação, permite-nos pensar que Júlio Moreira tem outras flechas para o seu arco. Mas não as mostrou neste livro.
 
 
Nota:
¹ trecho não identificado; possivelmente sejam estas palavras.
 
 
___________
SARAMAGO, José.  A execução - romance de Júlio Moreira, Prelo Editora (recessão crítica). In: Seara Nova, nº. 1459, maio de 1967.