por Viegas Fernandes da Costa*
Recém havia saído da adolescência e, por uma razão ou outra, li “Ensaio sobre a cegueira”. Não que isso importe algo, essa experiência que tenho da leitura dos textos de Saramago, mas diante da intransigência da morte e do sentimento de impotência que esta nos imputa, não vejo por onde me rastejar senão pela memória das impressões que o universo saramaguiano me concedeu. Então, como dizia, li o “Ensaio sobre a cegueira” e pude compreender a potência de uma literatura visceral e honesta. Não se é possível ler tal texto, parábola de nossa condição humana, sem a sensação de se ter vivido uma experiência que lacera o espírito e nos envergonha de nosso individualismo e imobilidade, que mascaramos com gestos vãos e palavras estéreis. “Ensaio sobre a cegueira” me desloca, sempre, ao genocídio tutsi em Ruanda, ao genocídio palestino perpetrado sob nossos olhos ocidentais e hipocritamente cegos, ao silêncio a respeito do povo de Timor Leste e às vítimas dos desgovernos e terremotos no Haiti, cuja capacidade de comoção duram o tempo de uma passarela, porque enfastiados de vermos as mesmas ruínas, buscamos saciar nossa eroticidade mórbida em outros charcos de sangue, em outras postas de carne humana desmembradas de seus corpos. Assim, sempre houve esta sensação de vergonha e culpa, sim, vergonha e culpa, que este primeiro contato com um texto de Saramago me provocou.
Movido pela inquietude provocada por esta primeira leitura, busquei mais. Foi quando me tocou o corpo o “Memorial do convento”. Marcou-me a poesia de um certo padre Bartolomeu, inventor de herética geringonça alada movida pelas vontades humanas que seu ajudante, Baltasar Mateus, colhia em um frasco em meio à multidão. Claro está, não há melhor combustível que faça voar um sonho senão a vontade humana. Entretanto, esta escapa-nos do corpo tangido pela necessidade de sobreviver. “Memorial do convento” ensinou-me que não há humanidade onde as vontades dão lugar à necessidade, onde se confunde sonho com devaneio. Sei que não cabe à literatura dar lições. Não, claro que não. Entretanto, o diálogo que estabeleço, enquanto leitor, com as provocações de um texto, apesar de socialmente construído está profundamente marcado pela subjetividade. Por isso posso reconhecer que sempre serei grato a Saramago por tudo que aprendi com Blimunda, Baltasar e Bartolomeu, personagens centrais desse seu “Memorial”. Grato por compreender aquilo que afinal nos constitui tão únicos, mas que nos foge quando tangidos qual gado a mover a roda do engenho.
Feitiço lançado, segui estupefato o fio de Ariadne, acompanhando os passos do Senhor José – o personagem – pelo labirinto de prateleiras vergadas e empoeiradas da velha Conservatória, guardiã do esquecimento. Falava Saramago – o autor – nas páginas que me remeteram a um Kafka revivido para concluir sua obra, tão tensa e intensa a trama e a fábula de “Todos os nomes”. Como possível uma história tamanho extraordinária? – a questão que me incomodava a cada linha sem pontuação que se desdobrava ante meus olhos de criança deslumbrada! Criança deslumbrada, com o perdão do pleonasmo, porque não há infância sem deslumbramento. Pensei ter lido o cume; engano! Indisciplinado, encontrei-me com um Cristo humano e carnado que, reconheço, quase me convenceu. Ironia do insólito! Como um ateu declarado podia reescrever uma história dois mil anos recontada e ainda assim torná-la inédita? E mais, como podia este mesmo ateu, ourives da palavra, construir uma das mais poéticas e profundas passagens da literatura universal, conquista sublime do espírito humano, quando nos transporta para o interior de uma barca atracada no centro de um mar tomado por intransponível nevoeiro? Saramago enfrentou Deus! Desfiou-nos um rosário de martírios e barbáries inconcebíveis e inexplicáveis capazes de dobrar as ambições do Diabo que, como Pastor que é, intervém junto a esse Deus sanguissedento em nome do perdão. A resposta? “Para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal” – ei-la! Espernearam os guardiões do cristianismo. Saramago não fora o primeiro, é certo. Kazantzakis fizera-o antes, tal qual tantos outros. Entretanto, a lucidez e os argumentos do velho comunista moveram o catolicismo português a tentar intervir no reconhecimento literário daquele que viria a ser o primeiro autor da língua portuguesa laureado com o Nobel de Literatura. Mágoa e exílio na insular Lanzarote, onde o mestre da palavra conheceu a diferença entre estar e não já não mais estar.
Depois do “Evangelho” não houve texto de Saramago que não me interessasse ler. É bem verdade, reconheço, que nem tudo foi deslumbramento. No “Ensaio sobre a lucidez”, por exemplo, a impressão de um resvalo planfetário; e em “Caim”, o gosto de uma sopa requentada. Neste meu rastejar pela memória das impressões que o universo saramaguiano me concedeu não há espaço para o desonesto, por isso o registro. Mas não há nada como o bom estro de um artista que se reinventa, e houve a história do Elefante Solimão e seu cornaca Subhro, escrita após grave enfermidade nos estertores de 2007. Ocorreu-me, à época dessa leitura, o pensamento de que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Isto porque em “A viagem do elefante” encontrei um Saramago mais leve, consciente da importância da sua literatura, porém ciente, também, de que talvez já tivesse dito o que havia para se dizer, e que àquela altura da sua vida e carreira importava mesmo o prazer de escrever uma boa história. E que boa história, tão repleta de sutilezas e ironias!
Enfim, soube que já não está mais. Morreu o corpo de José na manhã de uma sexta-feira, ao lado da mulher que amava. A mim ocorreu-me, então, reler o discurso que proferiu quando da cerimônia de entrega do prêmio Nobel, em 1998, e onde inicia dizendo que o homem mais sábio que conheceu em toda a sua vida não sabia ler nem escrever. Conta ali a história dos seus avós maternos que, nos dias de muito frio, levavam os porcos mais frágeis da pequena criação para dormirem consigo, sob o calor das mantas grosseiras. Alertou-nos Saramago, ao narrar a tradição ágrafa da família que o apresentou ao mundo, que o verbo não se determina nos gens. Que o gênio se constrói na experiência e na coerência. E assim o fez! Neste mesmo discurso, reconheceu que sua voz ecoa nas vozes das suas personagens. E se dizia que a morte era a diferença entre estar e já não mais estar, o Saramago que se consagrou à palavra, que se multiplicou nas Blimundas e nos Raimundos, nos homens e mulheres do Alentejo e nos tantos homens e mulheres que encontraram a eternidade no terreno universal da sua Literatura, se já não está mais nesta matéria perecível que nos compõe a todos, continua estando nas criaturas pelas quais falou e se fez ouvir. Por isso não choro a perda do mestre, pois lágrimas estéreis. Simplesmente lanço meus olhos para a estante e escolho o livro que fará Saramago estar novamente comigo.