Fonte: Jornal de Letras, 1-14 de julho de 2009 |
Carta de José Saramago para José Rodrigues Miguéis
"Lisboa, 12 de Maio de 1961
Meu caríssimo Amigo,
Señor, nuestro martillar
no nos aprovecha nada...
(Gil Vicente, Fragoa de Amor)
Que ideia a sua de cuidar que eu andaria aqui embezerrado, a rilhar enfados de malquerenças! Que grande engano o seu, se o pensou. Os nossos arrufos passavam-se num plano a que se pode chamar "técnico", o qual plano nada tem que ver como calor da boa e funda amizade que lhe consagro. Fica é entendido que quando o autor-Miguéis tiver qualquer motivo de queixa, por mais insignificante que seja ou pareça ser, rapa da portátil e põe ali, preto no branco, enquanto tiver de ser, os seus agravos. Cá estão os amigos-editores para os escutar e atender. E encerrado o incidente, passo ao restante.
Já cá tinha lido a denúncia miserável do miserável Anselmo. Teria ficado edificado, se o não estivesse há muito quanto à função policial por este "escritor" exercida. Bem compreendo a vontade de voltar que estas coisas lhe estarão dando... Isto por cá está tão pobre, meu Amigo, tão triste e mesquinhamente pobre! Agora já nem da fachada se cuida: como eu dizia há tempos em carta ao Jorge de Sena: "vive-se num jardim à beira-morte plantado...", em constante incerteza e insegurança, num temor que corrói tudo - a começar pelo futuro. Será que conseguiremos sobreviver? Como lugar geográfico, naturalmente, mas como povo? Que lugar ocuparemos no mundo daqui a cinco, dez anos? Põe-se a gente a imaginar, eo que imagina dá vontade de fugir.
Veja lá como as coisas são. Eu vi o "empeçou-lhe", e gostei. Mesmo depois da sua acusação de "gralha", continuo a achar que o termo está ali optimamente. O coitado do Gabriel não chegou sequer a ter domigo, o Filósofo "empeçou-lho". Para mim, não foi "gralha", foi esplêndido achado. E tanto que, tendo lido a prova, não vi "gralha". No seu lugar, deixava ficar o "empeçou-lhes". Era uma pequena satisfação que me dava... Em todo o caso, à 2a. edição é que já não pode acudir.
Não foi só ao Cochofel que a Escola* empolgou. Quantos me falam do livro (e não têm sido poucos, como deve calcular) acham que a Escola é a sua melhor obra e um dos melhores livros destes tempos. Uma senhora de quem me falaram, nada peca mas desconhecedora da regulamentação do Prémio Camilo Castelo Branco, afirmou que seria a maior injustiça deste mundo se lho não desse... Uma velha titular, que tinha 20 anos em 1910, achou que a Escola é "uma coisa linda", apesar de lá ter encontrado uns atrevimentos (talvez o seu pouco respeito pela Família Real!) que não lhe agradaram... O Luíz Amaro, da Portugália, confessou-se-me maravilhado... Três pessoas diferentes, uma opinião só. Bem disse eu n badana que a Escola será um clássico!
Vi o seu Boi-do-Val! Na Seara, com um execrável desenho de Lima de Freitas, aliás parece que a especializar-se em desenhos execráveis (aos meus olhos pelo menos). Pois vi o Boi-do-Val como quem encontra, ao virar da esquina um velho conhecido. É singular como as personagens literárias podem tornar-se criaturas vivas... Este Boi-do Val tem pra mim mais realidade que o vizinho de banco no comboio. Quem me deixou ficar de pé atrás foi o Gabriel, com o seu ar de adolescente com borbulhas, de pessoa inacabada. Mas ele aqui só passsa, quem importa é o tio Amândio: decerto, no conjunto, será digno do menino curioso e sensível da Escola! Em todo o caso, creio que será a sua personagem de "captação" mais difícil, mais trabalhosa. Estarei enganado?
Espero com o maior interesse o seu artigo sobre o Raul Brandão, que é um das maiores e mais velhas admirações minhas em literatura. Um livro como o Húmus, por exemplo, como é possível tanta gente o ignore? Não percebo, palavra. Falava o Régio, já aqui há tempos, no mau gosto de certas passagens. Bolas! Sempre gostava que me dissessem onde há, nos livros de Régio, às vezes duma pieguice muito professor-de-liceu-em-cidade-de-província, algo que iguale em ternura aquelas "mãos como cepos" da Joana, dessa criação única da nossa literatura que a mulher da esfrega! "Há sonhos humildes que ninguém quer sonhar: Servem à Joana que quando os usa os vira do avesso." Quantas vezes exprimiu assim a frustração um escritor português, uma frustração que nega até o direito a sonhos próprios?... Assim estamos nós, descendentes de Afonso Henriques e Albuquerque, de Cabral e Camões... Desculpe o excesso de a-propósito da ironia!...
Estimei saber que a saúde não vai pior. Mas esse problema da casa, não deve ajudá-lo nada a sanar. O melhor, se pudesse e fosse realmente... melhor, seria voltar. Mas quando será isso? Está decidido a abrir uma garrafa de champanhe no dia em que entrar nos Estúdios Cor. Decidi eu agora, ao escrever, mas os "patrões" não vao fora disso, com certeza...
Esta carta é toda ela não-comercial. Nem cheque (ainda é cedo), nem estatística (a doença dum empregado atrasou-ma). E não esperou UM MÊS! Não são tempos, mas a falta de tempo, que me não permite escrever-lhe tanto quanto gostaria, e se esta carta não é um primor de optimismo, é pelo menos uma "voz" cá deste lado, a voz de um amigo que o não esquece.
Abraça-o o seu muito grato
José Saramago
P.S. - Junto a carta-confirmação da sua autorização para a 2a. edição, assinada pelo Canhão em representação da... gerência. E acuso a recepção do... recibo dos cheques que foram com a minha carta de 22 de Abril.
*NR A Escola do Paraíso (1960), é o segundo romance de José Rodirgues Miguéis, e tendo por narrador uma criança dá um admirável 'retrato e testemunho do período final da Monarquia e do advento da República, bem como da Lisboa dessa época.
publicado inicialmente no Jornal de Letras, ed. especial, 1-14 de julho de 2009.