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(Ao rememorar a infância, Saramago diz se sentir ainda como era no passado e recorda de onde vieram suas referências literárias. A entrevista trata-se de conversa franca que tem por base o seu livro As pequenas memórias).


Há livros que, a partir do instante em que se anunciam, passam a ser esperados com impaciência. Quando José Saramago tornou pública a ideia de escrever memórias, seus leitores se encheram de expectativa, até saírem, finalmente As pequenas memórias. Aos 84 anos, com mais passado do que presente, esse escritor, professo em cavernas, arquivos e evangelhos, enfrentou um dos desafios mais duros de sua carreira: a infância.

Com As pequenas memórias pode-se dizer que sempre permanecemos ligados a nossa infância?

Sim, mas é preciso matizar essa afirmação. Meu povoado mudou muitíssimo e restam poucas pessoas vivas de minha geração. Por isso me atrevo a dizer que estou ligado, na realidade, à memória de tudo isso. Sempre mantive muitas vivas as lembranças da minha infância, tanto as boas quanto as ruins.

Foi um escrita feliz ou infeliz?

Não acho que, em geral, a escrita seja feliz. O que dá prazer é a leitura.

O senhor não encontrou nenhuma recordação nova ao mergulhar em sua memória?

Sim, encontrei. Eu já tinha a ideia de escrever este livro há anos, e descobri que a nossa memória guarda muito mais do que pensamos.

Mais do que fazer literatura a partir da infância, o senhor parece ir à semente. E seu leitor habitual encontra, nesse livro, o germe de muitos romances seus. Como o familiar cego e seu Ensaio sobre a cegueira, o pintor de cerâmicas e A caverna...

É surpreendente como essas lembranças e também esses esquecimentos podem ser a causa remota de determinadas referências literárias. Eu não posso evitar de me perguntar sobre isso.

Como conduziu o pudor? Pergunto isso porque o senhor cita possíveis infidelidades de seu pai e até um maltrato físico a que ele submetia sua mãe, que o leva a escrever: "Por isso, jamais levantei a mão contra uma mulher".

Eu quis ser sincero. Mas é evidente que certas passagens relacionadas com a vida doméstica, concretamente com meus pais, me provocaram dúvidas. Perguntei-me se tinha direito de dizer que meu pai maltratava minha mãe, mas imediatamente deixei de duvidar e me disse, por que não, se era verdade? Tentei ser o mais discreto que podia, mas, se sempre denuncio que a violência doméstica é uma chaga e um problema que o homem deve resolver, não podia me calar.

No terreno sexual, o senhor se mostra muito mais comedido. Ainda que mencione uma história com Domitilia, uma menina de 7 ou 8 anos.

Estamos falando da infância e tudo é muito ingênuo. Nunca se consumou nada, era pura curiosidade. Tive muito prazer escrevendo essa parte.

Pretende contá-lo em futuras memórias de adulto?

Nem pensar, não há nenhum interesse em que elas sejam publicadas. Falaria de quê? Das pessoas com quem me casei ou do que fiz ou deixei de fazer? Isso não interessa a ninguém.

Da aldeia de sua infância resta pouco.

A aldeia mudou, mas não de forma extraordinária. Há um bairro novo, mas o que mais mudou e mais doeu em mim foi o fato de terem arrancado todas as oliveiras e substituído-as por cereais. Desapareceu toda a paisagem da minha infância.

Resta algo daquele menino que caminhava descalço pela aldeia?

Olhe, por mais que pareça exagero, continuo sendo um camponês. Claro que não pelas roupas que vistou ou pelo modo de falar, mas a lembrança da minha infância é tão intensa que tenho de reconhecer que a pessoa que sou, não o escritor, mas a pessoa, tem suas raízes ali, naquele lugar, naqueles anos e naquele lar.

Há toda uma anedota em torno de seu nascimento. A data não é a mesma que a administrativa. Além disso, um funcionário bêbado converteu em nome legal um apelido familiar dos Saramago.

A questão da data era habitual na época, já que existia um prazo de 30 dias para registrar os nascimentos. A outra parte é mais engraçada. Por isso digo que, provavelmente, foi uma das poucas vezes na história da humanidade que um filho deu nome ao pai. Eu me chamo José de Sousa, como ele, mas minha família era conhecida com o apodo de Saramago. Graças àquele funcionário, passei a me chamar José de Sousa Saramago e, anos depois, meu pai teve de assumi-lo também em sua documentação, para seu grande pesar. O certo é que essa anedota me permitiu não ter de inventar um pseudônimo para minha carreira literária, já que se trata de meu próprio nome.

Quando pequeno, o que o senhor queria ser?

Maquinista de trem. Mas não pelo trem em si, senão pelo sentimento de responsabilidade de levar muita gente atrás de mim.

O senhor foi um aluno brilhante. Era muito caxias?

Não era caxias, mas é verdade que aprendia com muita facilidade. Não estudava em casa, me bastava o que estudava na escola.

O senhor se descreve com um menino triste, contemplativo, melancólico.

São traços que subsistiram por toda a minha vida. E eu mesmo não entendo por que me acontecem certas coisas, como ficar triste durante as festas. Não que a alegria dos demais me incomode. É só que, quando as pessoas ao meu redor se divertem, eu me pergunto: o que estou fazendo aqui? E, acredite, não é por nenhum sentimento de superioridade, tem a ver com a minha incapacidade de me integrar.

Preferiria estar sozinho nesses instantes?

Sim. Até jantando entre amigos há ocasiões em que preciso me isolar. Não posso evitar.

O senhor conta que ia sozinho ao cinema.

Gostava muito de fazer isso. Era um cinema sem poltronas, incômodo, divertidíssimo. Não sei se depois cheguei a ir tanto quanto naquela época.

O senhor continua tendo medo de cães e das sombras que provocam a escuridão?

Com os cachorros estou me dando melhor, sobretudo desde que tenho vários na minha casa em Lanzarote. E o pavor à escuridão se acabou em um dos múltiplos traslados que fiz quando criança em Lisboa. Um dia desapareceu, de repente.

Seu pai era policial em Lisboa, mas sempre teve de viver em dormitórios sublocados ou divindindo apartamentos.

Minha família era muito humilde. O fato de o meu pai ser funcionário público não significava que recebesse um bom salário. O mais importante para ele era seu uniforme de policial e que as pessoas o olhassem com respeito. Até meus 14 anos não podemos ter sequer um pequeno apartamento para nós três.

Nem depois disso pôde ter seu próprio quarto. O senhor conta até que chegou a dormir no chão junto à cama de seus pais, com as baratas passando por cima do seu corpo.

Não tive um quarto próprio até me casar, aos 22 anos. É verdadeiro esse episódio das baratas. E eu não o conto para dar pena.

O senhor fala com mais carinho de seus avós maternos, os que viviam na aldeia, do que de seus próprios pais.

Posso entender, mas não é assim. Talvez seja porque a vida na cidade, a que diz respeito a meus pais, não tinha tanto encanto quanto os verões que eu passava com meus avós. Em Lisboa, eu não podia andar pelas ruas, enquanto meu povoado era um universo inteiro. Meus avós gostavam muito de mim, mas à maneira camponesa, isto é, nada de muitos abraços e beijos. No povoado eu não tinha nenhum problema. Na cidade sim, e entre meus pais conflitos. Mas não tenho nenhuma dúvida de que também meus pais gostavam de mim.

Provavelmente muito o afetou o episódio da morte de seu irmão, dois anos mais velho que o senhor e morto aos 4, não?

Minha mãe sofreu muitíssimo. E é possível que não quisesse se apegar demais ao filho vivo, para não ter de passar por uma agonia similar se ocorresse algo com este. Além do mais, segundo parece, ele era um menino muito bonito, corado e muito bondoso, doía em mim. Porque eu era um menino triste e pálido. E cada vez que peda um beijo a ela, tinha de implorar muitas vezes, e quando ela dava era assim, rápido, seco.

E seu pai?

A influência da vida na cidade, em questões relacionadas a seu trabalho, a sua conduta sexual etc. fazia com que o ambiente da casa não fosse são.

Em compensação, o senhor descreve seu avô de uma forma muito poética, como um filósofo analfabeto. Não é assim com seu pai.

Minha relação com cada um deles era diferente, nem mais nem menos intensa. Meus avós eram muita boa gente, mas muito simples, nada de extraordinários. Eram camponeses analfabetos. Descreve-o como filósofo porque para mim era uma figura transcendente, uma pessoa alta, erguida, e eu me pareço muito com ele.

Sua avó lhe disse, aos 90 anos, que a vida era muito bonita e que dava pena morrer.

Pois isso minha mãe era incapaz de dizer. Sabe onde reside a diferença? Meus pais eram camponeses que haviam perdido suas raízes na cidade sem chegar a integrar-se a ela, e meus avós estavam muito enraizados em sua aldeia.

Até o ponto que seu avô abraça as árvores do sítio, uma por uma, para se despedir delas quando vê que vai morrer.

E fez isso chorando. Estava se despedindo. Quando você viveu coisas como essa, ou ver que seus avós colocavam na cama os porcos para ajudá-los a sobreviver com o calor do seu corpo, é lógico que tudo isso venha a influir em você. E não me refiro ao escritor, ao Prêmio Nobel de Literatura; falo da pessoa, do modo de entender o mundo.

Como o senhor me definiria, de modo sintético, cada um dos seus familiares?

Dos meus avós paternos não falo, porque não tive nenhuma ligação com eles. Dos maternos, meu avô seria a seriedade. Minha avó, a alegria. Com meus pais é mais difícil. Os dois se tornaram muito carinhosos com a idade. Sobretudo minha mãe. Mas a presença do meu irmão se interpôs entre ela e eu.

A viagem de seu irmão esteve presente de alguma maneira em sua vida posterior?

Não, eu era muito pequeno. Ele ganha presença quando me disponho a escrever Todos os nomes, porque isso coincide com meu trabalho de documentação em um cartório, onde trabalha meu personagem, e busco informação sobre sua morte e não encontro nada. Deixei-o assim, para que ao menos burocraticamente continuasse vivo.

Busquei nessa infância algum momento em que se vislumbre que o senhor seria escritor. Quando lhe lêem o folhetim Maria, fada dos bosques, ou quando vive sua primeira grande experiência de leitor com A toutinegra do moinho, de Émile Richebourg.

Não saberia dizer. Nunca fui desses meninos precoces que escrevem um romance aos 6 anos. Já contei que comprei meus primeiros livros aos 19 anos, e que até então lia na biblioteca. Então não posso dizer que estava predestinado. No entanto, lembro que aos 18 ou 19, conversando com meus amigos, me ocorreu de dizer que seria escritor. Ninguém fez qualquer observação. E acrescentei, "o que tiver de ser meu, a minhas mãos chegará". Como se eu não tivesse de fazer nenhum esforço para isso, como se tudo dependesse de uma espécie de determinismo ou fatalismo. Mas você já sabe o que ocorreu em seguida, publiquei aos 24 Terra do pecado, logo escrevi outro, intitulado Clarabóia, que não foi publicado e jamais será. Chegaram mais romances, passei 20 anos sem editar nada, enfim, o que quero dizer é que minha carreira literária ainda hoje me surpreende. Trabalhei como mecânico, como funcionário público, e publiquei Memorial do convento aos 60 anos, uma idade em que muitos autores já têm uma carreira feita. Não fui ambicioso, vivi dia a dia. Disse isto na Feira de Frankfurt quando me comunicaram que havia ganho o Prêmio Nobel de Literatura: "Não nasci para isto, mas isso foi-me dado". Tive a sorte de ter uma vida longa, já que me permitiu fazer em poucos anos o que não pude fazer ou não soube fazer antes. E não deixo de me perguntar porque aconteceu assim.

É interessante imaginar o que pensariam seus pais, seus avós, se o visse agora. Com algum deles em especial o senhor gostaria de conversar sobre tudo o que viveu?

Talvez como uma pequena vingança, e ainda que gostassem muito de mim, gostaria sim que meus pais me vissem. Agora lhes perguntaria: "Lembram de mim?". Mas sei que estariam muito orgulhosos. De fato, quando publiquei pela primeira vez meu pai ainda estava vivo e, ainda que não quisesse reconhecer, estava feliz. Mas quem eu gostaria de ver de verdade seria meu avô. Quando eu era um menino, nosso mundo era o mesmo, mas, agora, de que eu poderia conversar com ele? Não sei, e isso também não me preocupa. Me conformo em saber que gostaria muito de poder fazer isso.

Fonte: Revista EntreLivros
março/2007