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Luz rasante sobre o mito

Nessa entrevista concedida a Bruno Caseirão para o Jornal de Letras o escritor fala das adaptações dos seus textos pelas mãos do italiano Azio Corghi sobretudo acerca de sua peça Don Giovanni ou o dissoluto absolvido.




No prefácio a Don Giovanni, ou O dissoluto absolvido escreve: «Se há uma ópera no mundo capaz de pôr-me de joelhos, rendido, submetido, é esta (...) a música de cena mais sublime que alguma vez havia sido composta». Mesmo assim deixou-se tentar...

 Sim, é certo, deixei-me tentar, e ainda hoje me surpreende o atrevimento. Confesso que estive a ponto de desistir da empresa, por não encontrar maneira de escapar ao padrão dramático que, com poucas variantes, tinha vindo a ser seguido desde Tirso de Molina. O que me ajudou foi a minha antiga convicção de que Don Giovanni não podia ser, simplesmente, um odiado sedutor de donas e donzelas. Foi, sobretudo, aquele seu gesto de dignidade suprema quando rejeita, como se de uma ofensa se tratasse, as fáceis tentações de um falso arrependimento. Achei a solução das minhas dificuldades na pergunta que está na raiz de quase todo os meus romances: «E se?...». E se Don Giovanni não tivesse morrido, e se Don Giovanni não tivesse caído no inferno? As hipóteses são inúmeras, eu fiquei-me com a denúncia da falsa moral dos hipócritas. De todo o modo, o libreto de Lorenzo da Ponte é inultrapassável. Quanto à minha relação com a música de Mozart no Don Giovanni, ela é tão forte, tão intensa, que tenho chegado ao extremo, quando não posso escutar a ópera toda, de ouvir uma vez e outra aqueles sublimes oito minutos do diálogo final entre Don Giovanni e o Comendador.

O profícuo caminho da colaboração com Azio Corghi é já longo, do Teatro Musical, com Blimunda, estreada em 1990, e Divara (1993), passando pela produção vocal, de La morte di Lazzaro (1995), ?sotto l’ombra che il bambino solleva (1999), Cruci-Verba (2001) a De paz e de guerra (2002). O que encontra neste compositor, na sua arte, na sua música, para lhe confiar as suas obras.

Não conhecia nada de Azio Corghi quando ele me pediu autorização para adaptar o Memorial do Convento. Mas quando, finalmente, pudemos falar do assunto, olhos nos olhos, compreendi que podia confiar no homem e no artista. A partir desse feliz encontro só tenho tido motivos para me congratular. Uma grande amizade nasceu entre nós, cada composição sua ajuda-me a compreender melhor a minha própria obra.

Naturalmente que critica a libertinagem de Don Giovanni, a morte do Comendador, (mesmo que em duelo), mas apesar dessa crítica (à) ética, transparece na sua versão uma admiração pela coerência, pelo triunfo da vontade, da liberdade, da coragem, de Don Giovanni. Qual a «Principal Ideia» como refere Azio Corghi, da sua versão do mito de Don Juan?

A «principal ideia» a que se refere Azio Corghi é essa, precisamente: Don Giovanni é muito menos canalha que muitos dos que passam a vida a dar lições de moralidade. E vai prová-lo no instante derradeiro, quando a morte é iminente. Se eu salvei Don Giovanni foi porque, apesar das suas aparentes malvadezas eróticas, ele o tinha mais do que merecido.

Não me lembro de, no conjunto da sua obra literária, existirem referências negativas a personagens femininas, como aquelas que transparecem sobre Donna Anna e Donna Elvira em Don Giovanni ou O Dissoluto absolvido. Para o escritor que imortalizou, com a personagem de Blimunda, o Ideal Feminino e que disse um dia: «A mulher é o motor do Homem (...). Os meus personagens masculinos são mais débeis, são homens, são homens que tem dúvidas, são personagens masculinos complexos (...) as mulheres não» estamos perante uma mudança/novidade.

Não há nem mudança, nem novidade. Não fiz Donna Anna nem Donna Elvira, já as encontrei feitas. Olhei para elas e duvidei do papel de vítimas exemplares que se esforçam por representar. Donna Elvira estaria disposta a perdoar tudo se Don Giovanni voltasse para os seus braços, e Donna Anna, que recebia Don Ottavio na cama às escondidas do pai, não pode alardear tanto de pureza como a todo o momento nos quer dar a entender.

Em alguns ensaios de reflexão estética, como A Estátua e a Pedra ou Andrea Mantegna, Un’etica, un’estetica, salienta a busca da perfeição formal, uma concepção ética da expressão e o romance como veículo para a reflexão da vida. Em que medida estes conceitos se tornam visíveis em Don Giovanni ou O dissoluto absolvido?

O meu Don Giovanni quis ser uma espécie de luz rasante sobre o mito, pretendeu mostrar os acidentes orográficos do que tem passado por ser uma verdade lisa e íntegra. Mas, acima de tudo, quis dizer que a dignidade e indignidade vivem juntas nos seres humanos que somos e que é necessário muito esforço, todos os dias, para que a primeira não acabe por se afogar no pantanal da segunda.

Quem leu as suas duas últimas obras, Don Giovanni ou O dissoluto absolvido e As Intermitências da Morte, não deixará de se questionar sobre a importância do Amor e da Morte: Don Giovanni o mito, torna-se Giovanni o homem. É através do amor de Zerlina que também escapa à Morte e a Morte (nas Intermitências), humaniza-se na medida em que ama um homem.

O amor de Zerlina não veio salvar Don Giovanni da sua morte, mas do desespero. E a morte das Intermitências não terá outro remédio senão desprender-se, provavelmente num dia não distante, dos braços do homem a quem, como mulher, tinha amado. Não é verdade que o amor seja capaz de vencer a morte. Nada vence a morte. O que sim, é certo, é que o mesmo amor que todos os dias vai morrendo, também todos os dias vai ressuscitando.

No prefácio diz: «Era certo que sempre havia pensado que Don Giovanni não podia ser tão mau como andavam a pintar desde Tirso de Molina, nem Dona Ana e Dona Elvira tão inocentes criaturas, sem falar no Comendador, puro retrato de uma honra social ofendida, nem de um Don Octávio que mal consegue disfarçar a cobardia sob as maviosas tiradas que no texto de Lorenzo da Ponte vai debitando». Na humanização de Don Giovanni alcançada através do amor de Zerlina, uma jovem criada, naturalmente de origem humilde, e não através de nenhuma das Donnas: Elvira e Ana, haverá uma crítica social? Ou, simplesmente, até Zerlina, ninguém amara Don Giovanni?

Não duvido que as mulheres tenham amado Don Giovanni. Seduziram-no e, em muitos casos, amaram-no. Elas são as sedutoras, não o pobre Don Giovanni, sempre correndo atrás do odor di femina, como se fosse empurrado por um tropismo irresistível. O problema está em saber se Don Giovanni é capaz de amar. E para essa questão não creio que se tenha encontrado resposta.

A concepção ética do escritor, de que atrás falávamos, levou-o a eliminar Don Octávio, devido à sua faiblesse de carácter, à sua cobardia? Apesar de, deste modo, ter alterado subitamente o carácter giocoso da ópera?

Com perdão da vulgaridade da expressão, Don Ottavio é um fala-barato, além de um cobarde. Como Lorenzo da Ponte não o matou, matei-o eu. Não se perdeu nada. Donna Anna depressa encontrará um substituto.

No final da peça, Leporello diz: «Deus e o Diabo estão de acordo em querer o que a mulher quer?». Estaremos aqui, já não perante o Mito de D. João, mas de um outro, porventura mais poderoso: O Mito da Mulher e do Eterno Feminino?

Nada é eterno, meu caro Bruno. E eu, ao mito da mulher, sempre preferi a mulher desmitificada. Não foram as mulheres que se mitificaram a si próprias, foram os homens. E não parece que elas tenham ganho muito com isso.

Fonte: Jornal de Letras
16/03/2006