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Respostas a uma entrevista à revista Stilos a propósito de As intermitências da morte


1. Não se trata de uma reinterpretação das «intermitências do coração», mas sim de algo como um reflexo inconsciente da obra máxima de Proust. Já o título do meu romance estava decidido quando a memória, como um espelho que revelasse lentamente uma imagem antiga, me trouxe o eco, a ressonância do paralelismo formal entre as minhas «intermitências» e as dele. Tome-se a coincidência como homenagem do último dos discípulos ao mestre inalcançável.p> 2. A morte não pode ser conquistada. O que existe, em realidade, é uma simbiose entre a morte e a vida, uma necessidade mútua absoluta, uma relação a que quase poderíamos chamar de «comensalismo»: a morte, para ser, necessita a vida, mas a vida, para continuar a ser, necessita a morte.

3. Não há Primavera no diálogo entre a vida e a morte, salvo se entendermos como tal o surgimento de cada nova geração. O livro repete no final a frase com que havia começado para mostrar ao leitor o que ele já sabe, que não temos solução para o morrer. Rendida pelo amor, a morte do meu livro adormece nos braços do homem, no dia seguinte ninguém morrerá, mas isso apenas significa que no dia seguinte começarão a repetir-se as catástrofes, o caos, em suma, a demonstração da impossibilidade de uma vida sem morte.

4. Se a carta não tivesse sido devolvida uma, duas, até quatro vezes, a morte, que é obrigada por dever de ofício a matar aquele homem, não se teria transformado numa mulher. O que ela não podia prever é que se apaixonaria por ele. Talvez a música tivesse tido influência no despertar desse sentimento, mas também a terão tido o carácter particular daquele homem, a sua solidão, e até mesmo o cão que subiu para o regaço da morte.

5. Tudo morre, tudo acaba, e a arte não será excepção. Quando a espécie humana se extinguir nada ficará do que fizemos, do que pensámos, do que imaginámos. Para o universo será como se nunca tivéssemos existido. Os átomos que somos, esses que se dispersarão no espaço, não poderão contar nenhuma história nossa.

6. A cor violeta costuma ser associada à dor, à tristeza, à morte. Por isso a escolhi. Quanto à borboleta, foi razão suficiente para me servir dela o facto de ter no dorso uma mancha que se assemelha à forma de um crânio humano. Mas a morte não é representada por ela. A Acherontia atropos aparece somente como um elemento mais para criar a atmosfera em que a história se desenvolve.

7. Nada pode unificar as religiões, menos ainda a morte, que tem sido manipulada por elas, desde o paraíso prometido para depois de morrer até ao sacrifício de vidas próprias e alheias. E tudo sempre em nome dos deuses e para sua maior glória. Neste particular, a vida humana é uma farsa trágica.

8. A morte não anda por aí como se fosse algo exterior a nós. A nossa morte nasce connosco, nasce quando nós nascemos, levamo-la dentro, e durante esse tempo é apenas isso, morte. Até que chega o dia em que, ao tomar um nome (o nome da doença de que vamos morrer, por exemplo) se torna numa presença. A nossa «vingança», para chamar-lhe assim, é que essa morte não matará a ninguém mais, morrerá connosco. A crisálida é um trânsito de passagem, veio de uma forma de vida, é ela mesma uma forma de vida, para transformar-se noutra forma de vida. Se as crisálidas morressem não haveria borboletas.

9. O que não é igual em todo o mundo são as representações de Deus, não Deus. Deus, no improvável caso de existir (pessoalmente não creio na sua existência), seria único, um só. Não é portanto em nome de Deus que as religiões fazem guerra umas às outras, mas sim em nome das representações que dele fazem. Em minha opinião, isto mostra a dimensão da irremediável estupidez da espécie a que pertencemos.

10. Ninguém é completamente dono das suas acções. Somos condicionados em cada momento por tudo o que nos rodeia. Por exemplo: pode-se actuar contra a nossa época, mas nunca fora da nossa época. Ninguém poderá dizer: «Sou totalmente livre, faço o que quero.» É verdade que somos agentes da História, mas somos também sujeitos dela.

11. Uma história, um apólogo, uma alegoria. Sim, mas sobretudo um esforço para tentar compreender que é isto de ser-se homem.



[José Saramago. Disponível no Site da Fundação José Saramago]