Sobre literatura, compromisso e transformação social
Repito estas palavras lentamente – literatura, compromisso, transformação social –, pronuncio-lhes as sílabas como se, em cada uma delas, se escondesse ainda um significado secreto à espera de ser revelado ou simplesmente reconhecido, procuro reencaminhá-las para a integralidade de um sentido primeiro, restauradas do desgaste do uso, purificadas das vulgaridades da rotina – e encontro-me, sem surpresa, perante duas vias de reflexão, quem sabe se as únicas possíveis, percorridas mil vezes já, é certo, mas a que é nosso inelutável destino regressar sempre, quando a crise contínua em que vivem os seres humanos – seres em crise, por excelência, e humanos talvez por isso mesmo – deixou de ser crónica, habitual, para tornar-se aguda e, ao cabo de um tempo, culturalmente insustentável. Como parece ser a situação deste homem que hoje somos e deste tempo em que vivemos.
À primeira via de reflexão, que desde já, e pedindo perdão a quem o contrário pense, me atreveria a qualificar de ingénua, seria a de uma tendência muito corrente que consiste em incluir a literatura entre os agentes de transformação social, entendendo-se tal denominação, neste caso, não tanto como referida às consequências sociais decorrentes dos factores estéticos, mas sim a supostas determinantes influências, na ordem ética e na ordem axiológica, independentemente do carácter positivo ou negativo das suas manifestações. De acordo com tal maneira de pensar, e extrapolando, em benefício do raciocínio, conteúdos e formas historicamente diferenciados, para assim podermos abranger numa única visão o ensino, a literatura e a cultura em geral, haveríamos de coincidir, hoje, e apesar dos trágicos desmentidos da realidade, com a panglossiana convicção dos nossos oitocentistas e optimistas avós, para quem abrir uma escola equivalia a fechar uma prisão. Que venham as estatísticas escolares e judiciárias dizer-nos se a massificação do ensino se tem configurado, de facto, como prevenção bastante ou como antídoto eficaz contra a massificação da criminalidade, que é, sem dúvida, uma das características deste nosso final de século...
Deixemos, porém, as escolas de lado, deixemos de lado a cultura em geral, deixemos a arte, a filosofia e a ciência, para cuja adequada ponderação me faltariam o saber e a autoridade, e tornemos à literatura e à sua relação com a sociedade. Mantenhamo-nos discretamente nos domínios do ético e do axiológico (sem os quais, há que reconhecê-lo, qualquer exame de uma transformação social determinada, fosse qual fosse a sua época, teria de satisfazer-se com pouco mais do que uma tabela de pesos e medidas), e reconheçamos, por muito que essa verificação castigue a nossa confiança, que as obras dos grandes criadores literários do passado, de Homero a Cervantes, de Dante a Shakespeare, de Camões a Dostoievski, apesar da excelência de pensamento e fortuna de beleza que diversamente nos propuseram, não parecem ter originado, em sentido pleno, nenhuma efectiva transformação social, mesmo quando tiveram uma forte e às vezes dramática influência em comportamentos individuais e de geração. No plano da ética, dos valores, do respeito humano, apetece dizer, sem cinismo, que a humanidade (estou a referir-me, claro está, ao que costumamos designar por mundo ocidental) seria exactamente o que hoje é se Goethe não tivesse vindo ao mundo. E que, em reforço desta ideia, não consta que a leitura dos Fioretti de S. Francisco de Assis tivesse salvado a vida a uma só das vítimas da Inquisição...
Admissível é, pois, afirmar que a literatura, mesmo quando, por razões religiosas ou políticas, se dedicou a um missionarismo de bons conselhos e a uma engenharia de almas novas, não só não contribuiu, como tal, para uma modificação positiva e duradoura das sociedades, como provocou, muitas vezes, insanáveis sentimentos de frustração individual e colectiva, resultantes de um balanço negativo entre as teorias e as práticas, entre o dito e o feito, entre uma letra que proclamava um espírito e um espírito que não se reconhecia na letra. Bem mais fácil seria, para quem faça questão de descobrir em todas as coisas mútuas relações de causa e efeito, reunir provas da influência maléfica da literatura (de uma parte dela, pelo menos) nos costumes e na moral, e portanto na sociedade, tarefa, aliás, bastante favorecida pela presença obsessiva de algumas dessas obras e alguns desses autores, por exemplo, no imaginário sexual de milhões de pessoas, alimentando fantasmas e fantasias a que, de outro modo, ficariam faltando referências, abonações, modelos, por outras palavras, uma completa filosofia de vida... Entendidas assim tais relações, e adoptando a atitude, mais comum do que se imagina, daqueles que crêem que algo só tem existência verdadeira a partir do momento em que existe a palavra que o nomeará, o Sadismo ter-se-ia revelado ao mundo quando o marquês de Sade, ainda criança, arrancou, pela primeira vez, as asas a uma mosca, e o Masoquismo, também ele, teve de aguardar o dia em que a pequena alma de Sacher-Masoch, talvez por aquela mesma idade, e imitando, sem o saber, o exemplo dos místicos de todas as religiões, percebeu que era, primeiro, possível, depois, desejável, passar do sofrimento no prazer ao prazer no sofrimento. Ao cabo de milénios, depois de uma longuíssima espera, de tanto tempo perdido, o sádico e o masoquista puderam finalmente encontrar-se, reconhecer-se como complementares e, desta maneira, inaugurar a felicidade...
Este percurso, tão breve, pela primeira das vias de reflexão que se nos apresentaram, aquela que assentava no pressuposto de que a literatura, independentemente do significado moral ou imoral das suas expressões, teria exercido ou exerceria ainda influência nas sociedades, ao ponto de constituir-se como um dos seus agentes transformadores, conduziu-nos, creio, a uma conclusão pessimista e aparentemente intransponível: a da sua irresponsabilidade essencial. Irresponsabilidade, digo eu, no sentido restrito de que não será legítimo atribuir ao ciclo da Guerra das Duas Rosas de Shakespeare, tomemos este outro exemplo, a culpa de um eventual aumento, em número e em gravidade, dos crimes públicos ou privados em geral, como igualmente não teremos o direito de acusar o autor de Ricardo III de não haver podido lograr, graças ao que se espera ser a lição admoestadora e edificante de toda a tragédia, que os reis e os presidentes passassem a matar-se menos e os particulares a respeitar-se mais. Uns aos outros e a si mesmos, faltou dizer.
Se a literatura é de facto irresponsável, na dupla acepção de não poderem ser-lhe imputados, mesmo que só parcialmente, nem o bem nem o mal da humanidade, e portanto não estar obrigada, quer para penitenciar-se quer para felicitar-se, a prestar contas em nenhum tribunal de opinião; se, pelo contrário, actua, no seu fazer-se, como um reflexo mais ou menos imediato do estado mental das sociedades e das suas sucessivas transformações – então, a segunda via de reflexão proposta, aquela que, talvez com excessivo radicalismo, precisamente acabaria por mostrar a literatura como mero e obediente sujeito, mesmo nas suas aparentes rebeliões, essa via interrompe-se quando ainda mal tínhamos dado os primeiros passos, assim nos reconduzindo ironicamente ao ponto de partida, à bifurcação dos caminhos, à eterna interrogação sobre o que deve ser e para que deve servir a literatura quando, na vida cultural dos povos, se instala o sentimento inquietante de que, não tendo aparentemente deixado de ser, manifestamente deixou de servir.
Mesmo que o determinismo da conclusão possa humilhar certas vaidades literárias, mais inclinadas do que aconselharia a modéstia a magnificar o seu papel na repúblicas das letras e na sociedade em geral, penso que não teremos mais remédio do que reconhecer que a literatura não transformou nem transforma socialmente o mundo e que o mundo é que transformou e vai transformando, e não apenas socialmente, a literatura. Posta a questão assim, em termos simples, objectar-se-á que depois de nos terem fechado os caminhos, agora nos vêm fechar as portas, e que, encerrado neste círculo, sobre todos vicioso e perverso, nada mais restará ao escritor, enquanto tal, que trabalhar sem esperança de vir realmente a influir na vida da sua época, limitado a produzir os livros que a necessidade de divertimento da sociedade, sem o parecer, lhe vai encomendando, e com os quais se satisfarão ela e ele, ou, no caso de ter sido contemplado com uma porção suficiente de génio quando da sua distribuição pelo cosmo, escrever obras que o seu tempo compreenderá mal ou a que será hostil, deixando ao futuro a responsabilidade de um julgamento definitivo que, eventualmente seguro e justo nesse caso específico, reincorrerá, infalivelmente, em erros de apreciação quando, já tornado presente, for chamado a pronunciar-se sobre obras contemporâneas. Em verdade, o escritor, quando escreve, não está apenas só, está também rodeado de escuridão, e creio que não abusarei da minha limitada faculdade de imaginar se disser que até a própria luz da obra – pouca ou muita, todas a têm – o cega. Dessa particular cegueira não o poderão curar nenhuma crítica, nenhum juízo, nenhuma opinião, por mais fundamentados, e úteis em alguns planos, que se lhe apresentem, porquanto são emitidos, todos eles, de um outro lugar.
Em que ficamos, então? Se as sociedades não se deixam transformar pela literatura, ainda que esta, numa ou noutra ocasiões, possa ter tido nas sociedades alguma superficial influência, se, pelo contrário, é a literatura a que se encontra permanentemente assediada por sociedades, como são estas de hoje, que não lhe exigem mais do que as fáceis variantes duma mesma anestesia do espírito que se chamam frivolidade e brutalidade – como poderemos nós, sem esquecer as lições do passado e as insuficiências de uma reflexão dicotómica que se limitaria a fazer-nos viajar entre a hipótese, nunca satisfatoriamente verificada, de uma literatura agente de transformações sociais, e a evidência de uma literatura, outra, esta, que parece não ser capaz de fazer mais do que recolher os destroços e enterrar as vítimas das batalhas sociais –, como poderemos nós, insisto, ainda que provocando a troça das futilidades mundanas e o escárnio do senhores do mundo, voltar a um debate sobre literatura e compromisso, sem parecer que estamos falando de restos fósseis?
Espero que no futuro próximo não venham a faltar respostas a esta pergunta e que cada uma delas, ou todas juntas, possam fazer-nos sair da dolorosa e resignada paralisia de pensamento e acção em que parecemos comprazer-nos. Por minha parte, limito-me a propor, sem mais rodeios, que regressemos rapidamente ao Autor, a essa concreta figura de homem ou de mulher que está por trás dos livros e sem a qual a literatura seria coisa nenhuma, não para que ele ou ela nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou pequenas obras (o mais certo é não o saberem eles próprios), não para que nos eduquem e guiem com as suas lições (que muitas vezes são os primeiros a não seguir), mas simplesmente para que nos digam quem são, na sociedade que, eles e nós, somos, para que se mostrem todos os dias como cidadãos deste presente, mesmo que, como escritores, creiam estar trabalhando para o futuro. O problema não está em, supostamente, se terem extinguido as razões e causas de ordem social, ideológica ou política que, com resultados estéticos tão variáveis quanto as intenções, levaram ao que se chamou literatura de compromisso, no sentido moderno da expressão; o problema está, mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de comprometer-se, e em que muitas das teorizações em que hoje nos deixamos envolver não têm outra finalidade que constituir-se como escapatórias intelectuais, modos de ocultar, aos nossos próprios olhos, a má consciência e o mal-estar de um grupo de pessoas – os escritores – que, depois de se terem olhado a si mesmos, durante muito tempo, como luz divina e farol do mundo, acrescentam agora, à escuridão intrínseca do acto criador, as trevas da renúncia e da abdicação cívicas.
Depois de morto, o escritor será julgado segundo aquilo que fez. Reivindiquemos, enquanto ele estiver vivo, o direito a julgá-lo também por aquilo que é.
[SARAMAGO, José. Texto apresentado no Colóquio em Málaga e publicado na Revista Quimera.]