Terra do pecado
Romance, 1947
Quem hoje lê o romance - não sem uma certa sensação de estranheza, diga-se de passagem - percebe que se trata manifestamente de uma tentativa sem sequência, constituindo isso a que Saramago sugestivamente chamou "o livro de uma inexperiência vital". A história é algo complicada e gira em torno de uma viúva (exactamente A Viúva era o título original), de nome Maria Leonor; dela e também de uma sua serviçal, Benedita. Ora Maria Leonor tenta superar o trauma da viuvez e das circunstâncias que a ocasionaram e enrodilha-se numa existência atormentada por esse trauma; num tom que hoje, por certo, Saramago não subscreveria, declara o narrador: "Maria Leonor, no quarto, lutava desesperadamente, com os seus pesadelos e os seus fantasmas". Os pesadelos e os fantasmas de Maria Leonor acentuam-se depois, numa acção romanesca algo complicada, dividida entre o cunhado, um médico e a tal criada, cujo ascendente psicológico sobre a patroa, de mistura com insinuações de chantagem, lembra certamente a Juliana d'O Primo Bazilio (já se sabe: não é fácil, a um jovem escritor, calar ecos de leituras marcantes). Quando Maria Leonor, atormentada pelo remorso, resolve casar com o médico, ocorre um acidente que liquida o noivo, impede o casamento e encerra o romance. Assim se fecha o ciclo do pecado e da sua obsessão, vividos num espaço a que não falta alguma coloração social, sem que, contudo, o conflito nele ocupe a relevância que a ficção neo-realista da época cultivava.
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J. S.
[Nota publicada pelo escritor em Terra do pecado quando da reedição do romance, em 1997, pela editora Caminho]
Romance, 1947
Primeira edição de Terra do Pecado |
Quem hoje lê o romance - não sem uma certa sensação de estranheza, diga-se de passagem - percebe que se trata manifestamente de uma tentativa sem sequência, constituindo isso a que Saramago sugestivamente chamou "o livro de uma inexperiência vital". A história é algo complicada e gira em torno de uma viúva (exactamente A Viúva era o título original), de nome Maria Leonor; dela e também de uma sua serviçal, Benedita. Ora Maria Leonor tenta superar o trauma da viuvez e das circunstâncias que a ocasionaram e enrodilha-se numa existência atormentada por esse trauma; num tom que hoje, por certo, Saramago não subscreveria, declara o narrador: "Maria Leonor, no quarto, lutava desesperadamente, com os seus pesadelos e os seus fantasmas". Os pesadelos e os fantasmas de Maria Leonor acentuam-se depois, numa acção romanesca algo complicada, dividida entre o cunhado, um médico e a tal criada, cujo ascendente psicológico sobre a patroa, de mistura com insinuações de chantagem, lembra certamente a Juliana d'O Primo Bazilio (já se sabe: não é fácil, a um jovem escritor, calar ecos de leituras marcantes). Quando Maria Leonor, atormentada pelo remorso, resolve casar com o médico, ocorre um acidente que liquida o noivo, impede o casamento e encerra o romance. Assim se fecha o ciclo do pecado e da sua obsessão, vividos num espaço a que não falta alguma coloração social, sem que, contudo, o conflito nele ocupe a relevância que a ficção neo-realista da época cultivava.
A história é escorreitamente narrada, as personagens são delineadas com correcção e os cenários adequadamente compostos. O romance é, em suma, bem escrito e esse é talvez um dos seus problemas. Um daqueles que Saramago tratou de superar, através de uma longa, lenta e discreta aprendizagem da escrita narrativa, concretizada em trinta anos de imersão no silêncio.
[REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998, p.10-11]
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Aviso
O autor é um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que ganha a vida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralheria mecânica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar. Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição, segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhos da colecção “Cadernos” da Editorial Inquérito. A sua primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça familiar. Neste ano de 1974 em que estamosnascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há-de acostumar. Como no tempo em que viveu na aldeia já havia plantado umas quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro porque numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes, falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física, imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviador militar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também não sabe explicar porque foi que escolheu a Parceria António Maria Pereira quando, com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações, se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará para sempre como um dos mistérios impenetráveis da sua vida haver-lhe escrito Manuel Rodrigues, da Editorial Minerva, dizendo ter recebido A Viúva na sua casa por intermédio da Livraria Pax, de Braga, e que passasse ele pela Rua Luz Soriano, que era onde estava a editora. Em momento nenhum ousou o autor perguntar a Manuel Rodrigues por que aparecia a tal Pax metida no caso, quando a verdade é que só tinha enviado o livro à António Maria Pereira. Achou que não era prudente pedir explicações à sorte e dispôs-se a ouvir as condições que o editor da Minerva tivesse para lhe propor. Em primeiro lugar, não haveria pagamento de direitos. Em segundo lugar, o título do livro, sem atractivo comercial, deveria ser substituído. Tão pouco habituado estava o nosso autor a andar com tostões de sobra no bolso e tão agradecido a Manuel Rodrigues pela aventura arriscada em que se ia meter, que não discutiu os aspectos materiais de um contrato que nunca veio a passar de simples acordo verbal. Quanto ao rejeitado título, ainda conseguiu murmurar que iria tentar outro, mas o editor adiantou-se, que já o tinha, que não pensasse mais. O romance chamar-se-ia Terra do Pecado. Aturdido pela vitória de ir ser publicado e pela derrota de ver trocado o nome a esse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aos amigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva.
J. S.
[Nota publicada pelo escritor em Terra do pecado quando da reedição do romance, em 1997, pela editora Caminho]