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Todos os nomes
Romance, 1997



Edição brasileira de Todos os nomes.
Capa de Hélio de Almeida sobre relevo de Arthur Luiz Piza


























"E agora José?" Depois da festa barroca do Memorial do convento, depois do grave diálogo com as máscaras pessoanas em O ano da morte de Ricardo Reis, depois do processo de Deus lavrado em milagre estilístico em O Evangelho segundo Jesus Cristo, depois da sombria parábola-advertência de Ensaio sobre a cegueira, e de tantas outras obras notáveis, e agora?

Agora, e este surpreendente Todos os nomes, relato das aventuras de um José que como o do poema de Drummond é "sem nome" embora o seu seja o único a figurar na história. Extraordinárias aventuras, a deste modesto escriturário da Conservatória Geral do Registro Civil. O Sr. José, em sua aparente humildade, em sua autêntica solidão, em sua falta de bens materiais e afetivos, e, sobretudo, em sua inalienável dignidade humana, é um parente próximo de outras grandes personagens literárias: Bouvard e Pécuchet, os copistas enciclopédicos de Flaubert; o obstinado Bartlebley de Melville; o metafísico Bernardo Soares de Pessoa, e outros tantos escreventes por ofício, inconformados com o fato de a escrita da vida ser tão pouco favorável aos viventes que escrevem e são escritos.

O Sr. José, cumpridor exemplar de suas funções, começa por cultivar o hobby inocente de colecionar recortes sobre pessoas famosas. Mas como as informações sobre as pessoas, são, necessariamente, imprecisas e infinitas, ele resolve torná-las mais confiáveis e completas com a ajuda dos documentos de sua repartição. As diligências nesse sentido o levam a cometer infrações ao regulamento e a protagonizar aventuras de que ele nunca julgaria capaz. De infração em infração, e de surpresa em surpresa, o Sr. José acaba por misturar, como um deus, os domínios da vida e da morte.

Tão notável quanto a criação psicológica da personagem é a edificação verbal, por Saramago, do prédio da Conservatória: monumental, totalitário, labiríntico, assustador, como todos os arquivos em que se fixam e reduzem as vidas humanas, sejam eles repartições públicas ou bibliotecas de Babel. Atraído, como tantos grandes romancistas desde o século XIX, pela tarefa de fazer o inventário do mundo, mas cético quanto a essa possibilidade, Saramago opta pela desordem da vida contra a ordem da morte. E tudo isso num estilo que parece ter atingido, no máximo da simplicidade, o máximo de sutileza. Todos os nomes é um daqueles poucos livros que ainda merecem ser definidos como um clássico.

[Leyla Perrone-Moisés. Orelha da da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras, 1997]

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Todos os Nomes de José Saramago

por José Leon Machado



O mais recente romance de José Saramago tem por título Todos os Nomes e desvela-se como mais um aditamento àquilo que vem na linha de Ensaio sobre a Cegueira: a reflexão sobre a precaridade da vida humana, reflexão esta protagonizada por gente vulgar, neste caso um auxiliar de escrita de uma hipotética Conservatória Geral do Registo Civil. Como no romance anterior, as personagens não têm nome próprio, sendo identificadas por uma perífrase («a senhora do rés-do-chão», «a mãe da criança», «o marido ciumento», etc.). Exceptua-se a personagem central, o sr. José.

Perpassa ao longo do romance uma paisagem de chuva e de escuridão. A Conservatória Geral do Registo Civil é pouco iluminada e a escuridão do sótão da escola assusta o auxiliar de escrita que se mune de um foco aquando do assalto à escola. A maior parte das cenas, ou sucedem de noite, ou em edifícios fechados onde escasseia a luz. Toda esta ambiência é de certo modo o retrato caricatural dos medos e preconceitos humanos.

Além da escuridão, chove constantemente. Tal perturbação atmosférica vem já de outros romances. Destacamos O Ano da Morte de Ricardo Reis, que começa numa tarde chuvosa com o médico regressado do Brasil a entrar encharcado no hotel. O sr. José percorre as ruas da cidade onde chove constantemente. A atmosfera é cinzenta, soturna, húmida. Perpassa um frio espectral em todos os ambientes descritos.

A vida do sr. José é de algum modo semelhante à do revisor de provas da História do Cerco de Lisboa, o senhor Raimundo Silva. Tem mais ou menos a mesma idade, é solteiro e vive sozinho numa casa de grande simplicidade. O impulso que leva ao desenvolvimento da acção é semelhante: por um lado temos o revisor que se lembra de acrescentar um não à História do Cerco; por outro, temos o auxiliar de escrita que decide averiguar a vida de uma mulher desconhecida cujo nome consta de um verbete da Conservatória. Motivos? Aparentemente nenhuns. Dar justificação à própria existência? Sair da rotina? Impulso injustificável de, subitamente, cometer um crime ou um acto heróico?

Vemos então o Sr. José, auxiliar de escrita, à procura de uma mulher desconhecida. É, todavia, uma procura invulgar. Ele prefere começar por baixo, desde o local de nascimento, passando pela escola, numa busca de detective. É aqui que se enquadra O Castelo de Kafka. O agrimensor K. pretende falar com as autoridades competentes do castelo. Até lá demora-se em gabinetes, atarefa-se a preencher requerimentos.

O autor privilegia a descrição pormenorizada dos grandes espaços. Surgem quatro: a Conservatória, a escola, a cidade e o cemitério. São os espaços do ciclo da vida, que se inicia na Conservatória quando os pais lá se dirigem para registar o nascimento de um filho. Nestas descrições aparece amiúde a enumeração de objectos, tão peculiar no estilo de José Saramago.

O tema do labirinto transcorre em todo o romance. A Conservatória é um labirinto de ficheiros onde, para penetrar nos seus corredores, é necessário desenrolar um fio de Ariadne. Um investigador se perdera, tendo sido encontrado uma semana depois quase morto. O maior labirinto, é, contudo, o cemitério onde o Sr. José vai procurar o túmulo da mulher desconhecida. Apresenta-se qual árvore ou polvo com ruas bifurcadas. Enquanto o cemitério é o labirinto dos mortos, a Conservatória é o labirinto dos vivos e dos mortos com ficheiros diferentes para cada estado. Quase no final, o conservador ordena aos seus funcionários a junção dos ficheiros, sem qualquer distinção de vivos e de mortos.

Em Todos os Nomes não há voos metafísicos. Tudo se desenrola cá em baixo, entre o mundo de pedra e cimento, catalogado em extensos ficheiros, criado pelo homem e que o sufoca. O próprio protagonista tem a fobia das alturas. Tudo é demasiado chão. Tanto mais que o protagonista é homem de pouca cultura, em que as suas leituras não vão além dos jornais e das revistas donde ele recorta notícias para a sua colecção de personalidades famosas. As reflexões que se elevam um pouco do solo são aquelas que o sr. José tem com o tecto da sua casa, a própria consciência.

Sendo uma romance onde se problematiza o humano, Todos os Nomes não deixa de ser até certo ponto divertido, talvez o mais divertido de todos os romances que José Saramago escreveu, onde uma ironia que toca o rifão popular vai fazendo sorrir a cada passo o leitor.

[Texto publicado inicialmente em Letras & Letras]