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Um grande escritor comprometido


Finalmente, quase um século depois do seu nascimento em 1901, o Prêmio Nobel da Literatura redimiu-se de si mesmo coroando a obra do grande escritor português José Saramago, cujo nome já tinha soado nos últimos anos como um dos candidatos que tinham mais possibilidades de o obter, ao lado do patriarca brasileiro Jorge Amado ou o seu concorrente direto Lobo Antunes. Foi uma pena que a literatura portuguesa tenha sido tão tardiamente reconhecida por este galardão, em princípio o mais importante do mundo, mas é sobre ele que até hoje recai a ofensa imperdoável de não ter honrado antes a literatura que se escreveu em português de ambos os lados do Atlântico durante este mesmo século, dentro do qual, além disso, existiram figuras tão incontestáveis como Pessoa, Guimarães Rosa ou Torga, dignos herdeiros daqueles outros grandes da história que foram Camões, Gil Vicente, Mendes Pinto, Herculano, Almeida Garrett, Castelo Branco, Eça de Queiroz, Euclides da Cunha e tantos outros.

O prêmio para este grande escritor, poeta, dramaturgo, ensaísta e sobretudo narrador que é Saramago, tem características de absoluta necessidade tanto pela sua própria qualidade como por uma justiça duplamente cumprida, pela sua envergadura pessoal e pela língua em que escreve, uma das literariamente maiores da história universal; embora precisamente por ele mesmo só parcialmente redimir a injustiça de tão absurdo atraso. De fato também ao honrar, através de Saramago, a literatura escrita em português, o Prêmio Nobel honra-se finalmente a si mesmo.

No entanto, alguma desta injustiça sentia-se nos ambientes europeus nas últimas décadas. Recordo um fato significativo a este respeito, quando, em meados dos anos 80, Saramago foi convidado pelo «Carrefour des Littératures Européennes», que anualmente se celebra em Estrasburgo, e ao qual tive oportunidade de assistir.

Ali, em torno da sua pessoa e obra, que já era muito conhecida na Europa, onde já tinha sido traduzido profusamente em quase todas as línguas, organizou- se uma mesa redonda sobre o seguinte incompreensível tema: «Será que a literatura portuguesa é uma literatura europeia?» Perante este disparate levantaram-se numerosos protestos fazendo notar que a Europa era uma criação nascida do cruzamento entre Roma e os bárbaros, e que se Estrasburgo tinha sido uma criação destes últimos, a Lusitânia fazia parte do mundo romano, desde muitos séculos antes. Mas a serenidade, a boa vontade e a facilidade de expressão de Saramago cativou o público assistente e o sangue, por esta vez, não chegou ao Reno.

Talvez por isso Saramago tenha expressado muitas vezes as suas reticências frente a esse europeísmo tão simplificador que faz grandes estragos, tanto no seu país como no nosso, convertendo-se a uma espécie de «pensamento único» alienador, contra o qual escreveu essa mítica narração que é A Jangada de Pedra, em que ficciona a imaginária ruptura do velho continente pela linha dos Pirineus, com a qual a Península inteira, Espanha e Portugal, se convertem numa gigantesca jangada à deriva através do Atlântico em busca da sua verdadeira localização. Talvez também por isso Saramago tenha eleito como local de residência, nos braços da jovem mulher, a espanhola Pilar, a ilha de Lanzarote, como se fosse um resto dessa utopia, ou quiçá a sua semente para o futuro. Não há que pensar por isso que Saramago seja antieuropeísta, pois não desconhece a realidade europeia de Espanha e Portugal: simplesmente adverte contra essa Europa dos mercadores e das bolsas, frente aos quais tanto o seu país como o nosso têm que ir cultivando as suas próprias características e as suas mais profundas raízes.

Por último, no que se refere ao seu pensamento geocultural, creio que tão-pouco se pode simplificar demasiado dizendo que Saramago é um hispanista total, um hispanófilo a martelo somente. É-o, porém, através daquilo a que chama «iberismo», que no seu caso é uma total mescla peninsular, que cuida de cada um dos seus pormenores, ao ponto de ter ido viver para uma ilha. É um português ibérico, peninsular e insular ao mesmo tempo, que desembocou nessas ilhas precisamente porque parecem tão separadas da península continental como atraídas por ela. Se foi viver para Lanzarote foi tanto por amor como por refúgio, pois a vida literária é pouco cômoda em Portugal, onde as injustiças e invejas são tão usuais como entre nós, e bastaria relembrar as dificuldades que se levantaram quando publicou essa obra admirável que é O Evangelho segundo Jesus Cristo e que o seu próprio país (o seu governo) vetou para o concurso europeu. Os seus Cadernos de Lanzarote refletem muitas dessas dolorosas circunstâncias, que por vezes até lhe proporcionaram, infelizmente, algumas considerações um pouco paranóicas. Pois se se pode queixar, com razão, contra as injustiças que no seu país se praticaram, não creio que possa fazê-lo com a recepção que se lhe fez em Espanha, onde sempre gozou do respeito, do carinho e da admiração que a qualidade da sua obra e a objetiva honestidade da sua pessoa inspiram.

Só me resta uma reflexão final, se bem que me apresse a dizer que é a mais importante: Saramago é um dos últimos grandes escritores comprometidos da história, agora que a noção de compromisso está tão esquecida e até abandonada por um implacável mercado literário da nossa sociedade de consumo. Embora retirado hoje da política «ativa», na qual teve uma longa vida de militante, chegando a ser - apesar de apenas por uns meses, findo os quais se demitiu - presidente da Assembleia Municipal de Lisboa por uma coligação socialista/comunista, o seu pensamento sempre foi e é político, comprometido com as forças de esquerda, o que se refletiu em alguns livros admiráveis, como Levantado do chão (o mais realista), a par de outros mais míticos como a sua obra-prima Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis; o combate libertador em História do cerco de Lisboa, o anti-dogmatismo de O Evangelho... já citado, ou essa fábula anti-totalitária que é o Ensaio sobre a cegueira. E estes não são ainda «todos os nomes», porque felizmente ainda nos falta aguardar muitos mais. E pela parte que nos toca, que é mais do que aquilo que pensamos e do que porventura merecemos, também nós, os leitores espanhóis, estamos hoje de parabéns.


Rafael Conte. ABC, 8 de Outubro de 1998.


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Saramago ou a Profecia de "Todos os Nomes"


Vejo Saramago em silêncio, sentado - e Pilar del Río junto a ele - na escadaria do anfiteatro do Palácio de Exposições e Congressos - deve ter sido lá - de Valência. Durante o Congresso de Escritores de 1987, que Ricardo Muñoz Suay organizou no princípio do Verão desse ano, para comemorar o meio século de memória daquele outro antifascista, celebrado em plena Guerra Incivil, em 1937. Vejo-o ali, sentado e em silêncio, com os seus olhos quase fixos, diminuídos, atentos aos gritos, ao protagonismo transbordado de tanto escritor congressista, à palavra interminável e exaltada dos poetas e aos romancistas que entram e saem incessantemente do encontro valenciano. Falava Octavio Paz sobre Popper, e Juan Goytisolo, e falava Vargas Llosa, e falavam Semprún e Cabrera Infante; gritavam os cubanos do interior da Ilha, diziam aos gritos que no seu país havia liberdade, vejo-os, Miguel Barnet acima de todos; falavam os cubanos, e falavam Savater e Vázquez Montalbán; falavam, falávamos e falaríamos todo o tempo de nós próprios. Mas eu vejo Saramago em silêncio, sentado junto de Pilar del Rio, às portas do Verão de 1987, escutando atentamente a insaciável ladainha das liberdades de todos os lados, os compromissos múltiplos e as ambições dos escritores.

Depois vi-o em muitos outros lugares, encontramo-nos, falamos (não discute: olha e escuta, com os lábios estendidos, como se procurasse convencer com o silêncio, que silêncio, o de Saramago!); sigo-o e li-o em O Ano da Morte de Ricardo Reis, nas páginas de Memorial do Convento e encontro-o no Ensaio sobre a cegueira, para citar três pilares essenciais deste Prêmio Nobel da Literatura. Finalmente os suecos, depois de tanta distância e tanto esquecimento injusto, chegaram a Lisboa e às literaturas portuguesas neste homem autêntico, neste romancista do Sul que vive na ilha de Lanzarote, Canárias, e que portanto é - também - profunda toca vulcânica, além de lisboeta «de nascimento», de origem, memória e natureza. Quando lhe perguntaram porque é que tinha ido viver para tão longe, Saramago respondeu com a melancólica ironia que muitas vezes se escapa do seu olhar atento: «Longe não, vivo num bairro da Europa», que também é a sua terra porque nenhum português se sentiu estrangeiro nas Canárias; e muito menos Saramago. Por isso, nesse bairro da Europa, Lanzarote (ontem e hoje, capital Lisboa), nas Canárias inteiras e em toda a Península Ibérica há festa justificada.

Finalmente os acadêmicos suecos premeiam-se a si próprios premiando José Saramago.

Como numa metáfora literária da sua própria biografia, Saramago converteu-se agora na memória recordada de «todos os nomes» das literaturas de língua portuguesa, os nomes de todos os que foram esquecidos pelos ilustres nórdicos, até infiltrar no autor de A Jangada de Pedra a justiça literária que haviam negado à poesia de Pessoa, aos textos de Torga, aos romances de Guimarães Rosa e de Jorge Amado, e aos de Clarice Lispector, os nomes de tantos poetas e romancistas, escritores da palavra portuguesa nesta parte do mundo peninsular; entre as ilhas da Macronésia e mais além do Atlântico, e muito mais além da imaginação geográfica, ainda mais além de Goa e Timor, quase no outro mundo que Vasco da Gama trouxe até à história e à memória do Ocidente.

Vejo Saramago observando o horizonte do Atlântico desde a sua casa da Ilha (levantando a cabeça para ver o mar longínquo) e vejo-o descendo lentamente até ao mar, com as mãos nos bolsos das suas calças, erguido no ar, como uma cana alta de bambu, vejo-o descendo a avenida da Liberdade lisboeta até chegar à Praça do Comércio, junto ao estuário do Tejo, os lábios abertos da América. Contam que quando Felipe II se debatia com a dúvida sobre a localização da capital do Império, visitou o Rei Pai, velho e sábio, em Yuste, onde estava já retirado para lhe serem perdoados todos os seus pecados menos o da gula, que exerceu como um profissional do excesso gastronómico até à sua morte. O Velho Imperador, cheio de solidão e contradições, aconselhou com a visão de quem já havia pensado o futuro: «Se queres manter o Império, põe-na em Toledo se queres acrescentá-lo põe-na em Lisboa, e se queres perdê-lo, põe-na em Madrid», disse-lhe. Contudo também hoje em Madrid, cidade à qual se atribui as culpas de tudo, capital de tantas coisas, de tantas alegrias e tantas dores, a celebração de Saramago e da língua e literaturas portuguesas é sincera, alargada e fresca, própria desta cidade franca e aberta a todos neste fim de século.

Vejo Saramago na Feira do Livro, caminhando pelo pó de Maio e pelas suas chuvas, como que alheado de tudo mas sempre atento a qualquer ar que se mova em seu redor. Vejo-o entre luzes de literatura e muitas gentes com eco nos salões do Círculo de Belas Artes de Madrid, tentando passar despercebido, afastando-se para não chamar a atenção e parando, reservado, no ambiente claro/escuro e fronteiriço onde se dá a mão ao silêncio, o olhar pessimista do escritor e o trato afável e claro de nós, que o admiramos, Juan Madrid, em calças de ganga, César Antonio Molina, Pilar, Saso Blanco, eu mesmo. Vejo-o imagino-o, enquanto jantamos as velhas fritadas do mar da Ilha, em Puerto del Carmen - no Brasil, há uns anos, comprometendo-se com os sem terra, as gentes dos Estados perdido no inferno, de quem ninguém faz caso e onde nem sequer o diabo se atreve a entrar para impor a sua ordem.

Vejo Saramago daqui a dois meses em Estocolmo, engalanado dentro do círculo eterno que por uns instantes talvez justifique tudo para muitos outros escritores, embora nem a importância de ser Nobel vá conseguir modificá-lo em nada. Vejo-o em Estocolmo (vejo também os olhos brilhantes de Pilar del Rio, a seu lado), e reli-o agora mesmo nesses invejáveis e despojados diários dos Cadernos de Lanzarote, que me inspiraram e alimentaram os meus próprios Cuadernos de Casa de América. Vejo e releio esse texto de Saramago, o diário descarnado do escritor nu perante si próprio, desafiando-se sempre a resistir, a ancorar-se sempre na heresia; tal qual se pode ler nos seus Cadernos de Lanzarote, uma radiografia que o põe a descoberto sem hipocrisia nem floreados, uma geografia escrita a golpe de tatuagens, memórias, sustos, regozijos, angústias e, por vezes, acalmias. E vejo-o e leio-o com a sua coerência às costas, com a austeridade irritante, invulnerável, resistente à persecução implacável do tempo, imerso o escritor na sua própria estatura de herege, fazendo frente aos fantasmas, aos demónios, às Santas Inquisições do passado, do presente e do futuro. Um achado impagável, pelo menos para mim, esses Cadernos de Lanzarote, a escrita do homem a partir de um bairro da Europa, capital Lisboa, a que chega até ao mar, a cidade antiga e senhorial que connosco se alegra porque os académicos suecos concluíram finalmente que a única maneira de não continuarem a envergonhar-se lá em cima, no Norte, por não terem outorgado até ontem o Nobel de Literatura à língua e à literatura portuguesas, era concedê-lo- tarde, mas já não tão tarde- a José Saramago, todos os nomes, ao fim e ao cabo um escritor completo, inteiro e verdadeiro.


J. J. Armas Marcelo. ABC, 9 de Outubro de 1998


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"Leiam-me em voz alta"


O Prêmio Nobel não conta entre as suas virtudes com a da infalibilidade; talvez por isso, quando acerta, a reação de quem acolhe os seus ditames com ceticismo, junta a perplexidade ao alvoroço. Ao premiar José Saramago, a assembleia dos acadêmicos suecos não se limita a reparar uma obscena e demasiado repetida injustiça; dirigiu também o seu veredito para a literatura em estado puro, sem condimentos políticos, folclóricos ou sociológicos, essas rêmoras que nos últimos anos têm enturvado o elenco dos ganhadores, com nomes tão discutíveis ou estranhos como Morrison ou Fo.

Foi premiado um homem na plenitude dos seus recursos, entregue a uma obra que em cada título incorpora novos motivos de deslumbramento. Em 1985, quando foi publicado em Espanha O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago era para nós um escritor quase secreto, mas desde aí a sua envergadura literária e moral continuou a crescer, com um vigor impetuoso, dono de uma coerência interna que distingue os mestres. Porque a obra de Saramago sempre se caracterizou pela sua condição de rescrita da realidade e revisão histórica, por um afã de conhecimento critico que por vezes decanta pelos caminhos da alegoria e da parábola, ou pelo esforço retrospectivo (não direi «histórico», pois esta etiqueta banaliza as pretensões da narrativa de Saramago), mostrando que a melhor maneira de entender o presente e atuar sobre o futuro consiste em explorar o substrato do passado.

Esta escrita entendida como indagação na história e na realidade coloca Saramago numa posição privilegiada, afastada em igual medida do esteticismo orgulhoso e do compromisso vociferante. No citado O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago presta homenagem à figura de Fernando Pessoa, através de um dos seus grandes heterônimos, mas não se trata de uma homenagem suave e desanimada, tratando-se, pelo contrário, de uma crítica implacável à atitude resignada do protagonista, que assiste estoicamente ao envilecimento do mundo. Esta mesma atitude crítica anima outras obras da mesma época, como Manual de pintura e caligrafia, onde nos narra a crônica de uma derrota e de uma crise estética e vital, através da figura de um pintor de encomendas que afasta da sua submissão o academicismo e usa a escrita como veículo de revolução interior. Insistindo nesta mesma intenção, Raimundo Silva, o protagonista de História do cerco de Lisboa, proporá uma história alternativa que desmonta a história oficial e herdada, audácia que será também uma forma de intimamente se redimir. São, todos eles, romances nos quais Lisboa tem um protagonismo local, erigindo-se, mercê do encantamento quase de salmo que a prosa de Saramago tem, e da sua capacidade para recriar atmosferas opressivas, numa geografia cheia de sombras, envolvente e barroca.

Este projeto estético e de crítica e introspecção nos abismos da realidade e da inter-história que sustem os romances de Saramago e que se tornará ainda mais notória em O Evangelho segundo Jesus Cristo, onde nos é proposta a revisitação de um dos mitos germinantes da nossa cultura a partir de uma perspectiva humaníssima, não nega o maravilhoso nem o inexplicável. Ensaio sobre a cegueira, a meio caminho entre a parábola e o pesadelo, afunda-se com sombria lucidez num cenário de caos e depredação, onde o homem se converteu num lobo do homem, mas no qual ainda é possível uma centelha de luz e de esperança. Todos os Nomes, por fim, coroa uma trajetória regida pela fidelidade aos compromissos estéticos e vitais que sempre defendem o humanismo face ao silêncio burocrático que nos oprime.

Um escritor é a procura de um estilo que unifique a sua obra. Saramago soube dotar a sua prosa de uma respiração inexorável e tenaz que atua sobre a linguagem com um ritmo lento, tecendo sobre o leitor a teia doce de uma ladainha. Nesse estilo que é forma e fundo ao mesmo tempo, música interior e fluxo sustenido da primeira à última linha, reside a principal singularidade de uma obra que exerce sobre nós o mesmo poder de convicção da melhor poesia. «Leiam-me em voz alta», recomendou Saramago aos seus leitores em mais de uma ocasião; quando seguimos este conselho, a sua literatura atinge essa nitidez solene e quase oracular das palavras que nasceram com vocação de eternidade.

Juan Manuel de Prada. ABC, 9 de Outubro de 1998.