Balada

+A +/- -A
Dei a volta ao continente
Sem sair deste lugar
Interroguei toda a gente
Como o cego ou o demente
Cuja sina é perguntar

Ninguém me soube dizer
Onde estavas e vivias
(Já cansados de esquecer
Só vivos para morrer
Perdiam a conta aos dias)

Puxei da minha viola
Na soleira me sentei
Com a gamela da esmola
Com pão duro na sacola
Desiludido cantei

Talvez dissesse romanças
Ou cantigas de encantar
Aprendidas nas andanças
Das poucas aventuranças
De quem não soube esperar

Andavam longe os teus passos
Nem as cantigas ouviste
Vivias presa nos laços
Que faziam outros braços
No teu corpo que despiste

Quanto tempo ali fiquei
Sangrando os dedos nas cordas
Quantos arrancos soltei
Nesta fome que criei
Nem eu sei nem tu recordas
Porque nunca tos contei

Até que um dia cansaste
(Era pó não era monte)
Outra lembrança deixaste
E nas águas desta fonte
A tua sede mataste
— O arco da minha ponte


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SARAMAGO, José. Os poemas possíveis. 3a. ed. Lisboa: Caminho, 1981.