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Imagem: DN Online


Porque é que acha que as pessoas têm uma necessidade tão grande de acreditar?

Há uns que sim, que têm essa necessidade, outros não. Então, se a pergunta é legítima - porque é que as pessoas, muitas pessoas, têm uma enorme necessidade de crer e tal -, a outra pergunta também seria legítima - porque é que certas pessoas não têm nenhuma necessidade de crer.

E tem resposta para alguma delas ou não?

Eu não decidi pensar aquilo que penso. Fui levado naturalmente pelo meu processo de desenvolvimento, de crescimento, e tudo isso à impossibilidade de crer na existência de um deus. Não posso. Não sou capaz de crer na existência de um deus, tudo em mim rechaça essa ideia, se recusa a entrar nesse jogo, um deus que nunca ninguém viu, que não se sabe onde está, um deus de uma certa religião e não de outra. E depois há coisas que já têm que ver com aquilo a que se poderia chamar uma consciência moral. Qualquer pessoa que queira enfrentar a realidade dos factos chega à conclusão - é muito fácil chegar a essa conclusão - de que as religiões nunca serviram para nada, porque nunca serviram para aquilo que fundamentalmente deveriam servir - para aproximar as pessoas umas das outras.

Mas o José em nenhum momento foi crente, nem quando era novo?

Não, não, nunca fui de crenças. Fui uma vez ou duas vezes à missa quando tinha seis anos, ou coisa que o valha - uma vizinha do prédio onde morávamos disse à minha mãe "ah, eu gostava de levar o seu filho e tal", e a minha mãe disse "pois leve, então leve" -, mas aquilo não me convenceu nada, pá, e fui eu quem disse à minha mãe "não, não, eu não vou, não vou a isso". E não, nunca mais fui. Não tive nenhuma crise religiosa, não tenho medo da morte, não tenho medo do inferno, não tenho medo do castigo eterno pelos pecados... que pecados? Pecados, o que é isso, pá? Quem é que inventou o pecado? A partir do momento em que se inventa o pecado, o inventor passa a dispor de um instrumento de domínio sobre o outro, tremendo. Se tu metes na cabeça de uma pessoa a ideia de que pecou, podes fazer dessa pessoa aquilo que quiseres. E foi o que a Igreja fez, e já não faz tanto porque, coitados, já não têm nem metade do poder que tinham. É mais uma farsa, mais uma farsa trágica, que a Igreja representa todos os dias.

Alguém imagina deus a pensar, em tempos, é pá, isto da humanidade vai ter umas coisas giras e tal, mas vou-lhes arranjar aqui um sarilho com essa coisa da tendência que têm para pecar na cama ou fora dela, vou-lhes preparar aqui um vírus que se vai chamar sida, que os vai lixar, pá, e foi assim, o vírus ficou uma data de anos à espera que chegasse a ocasião de se manifestar e pronto, já está. Deus tinha tudo muito bem calculado? Não, realmente é triste como é que as pessoas não puderam, não conseguiram libertar-se dessa superstição paralisante. Deus onde está? Antigamente dizia-se que estava no céu, mas o céu não existe, pá, não há céu, não há céu, o que é isso de céu? É o espaço a 13 mil milhões de anos-luz... imagina, os limites do universo encontram-se a 13 mil e setecentos milhões de anos-luz, anos-luz... Onde está deus? Mas quem quiser crer, crê e acabou-se. Eu digo alto e bom som que não, não, enfim, para mim, não. E repara que com 84 anos já seria uma boa altura de começar a pensar no futuro, ter um bocadinho de cuidado com o que digo, não é? Mas isso não muda em nada a realidade, a realidade continua a ser igual à de sempre - nascer, viver e morrer e acabou. Espero morrer lúcido e de olhos abertos.

Mas ontem o José - claro que são aquelas coisas de expressão que nós usamos - quando estávamos a falar do corpo humano - lembra-se? - estava a usar a expressão "milagre".

Mas não é no sentido próprio da palavra, é no sentido de coisa estranha, surpreendente.
 
 
 
 
 
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Publicada inicialmente em 05 de dezembro de 2010, no site do Diário de Notícias. Aqui.