Imagem: DN Online |
Que imagem tem o mundo de Saramago? E que imagem tem este do mundo? As questões estão no centro da quarta (e última) conversa com Miguel Gonçalves Mendes, autor de 'José e Pilar' . O escritor morreu em 18 de Junho, em Lanzarote. O filme está agora em exibição.
Que imagem é que o mundo tem de si? E que imagem é que o José tem do mundo?
Uma coisa é a imagem que eu tenha na Travessa da Queimada, e aí realmente é que sou essa coisa toda que dizem que sou. Creio que a imagem que o mundo faz de mim, aquela parte do mundo que está interessada naquilo que faço ou naquilo que diga é que sou uma pessoa de uma coerência à prova de bomba, que não tenho medo daquilo que digo nem daquilo que penso, e que digo aquilo que penso sejam quais forem as circunstâncias em que tenha que dizer, se realmente tenho de o expressar. Sou uma pessoa que se preocupa com os gravíssimos problemas deste mundo, que intervém sempre que pode, que ajuda sempre que pode, bem acompanhado, enfim, pela mulher que tenho, há que acrescentar, e essa é a imagem que as pessoas têm de mim. Mas essas pessoas não têm de sofrer do pecado da inveja, porque pertencem a outros países. Agora, no que se refere a Lisboa, essa saudosa Lisboa, bom, refiro-me a um certo tipo de pessoas lá, para quem o êxito dos outros é insuportável, e só não os eliminam porque, enfim, não podem, a lei não o autoriza.
Mas uma coisa são as pessoas e outra coisa é a cidade.
Pois é. A pergunta que se fazia, embora não tivesse sido formulada exactamente assim, quando eu comecei a publicar, já um homem de 60 anos, os livros mais sérios, mais importantes que eu fiz até hoje, a pergunta era esta: E donde é que este gajo saiu? Não saiu da Uni-versidade, não saiu de grupos intelectuais, não saiu de parte nenhuma, não se sabe de onde é que este gajo saiu, depois escreve um livro que se chama Levantado do Chão, escreve outro melhor ainda que se chama Memorial do Convento, outro melhor ainda que os outros dois que é O Ano da Morte de Ricardo Reis, e continua a escrever até hoje. De onde é que saiu este filho da puta? E quem é que vai digerir isso, pessoas que estavam instaladas na sua própria reputação, na sua própria fama, no seu próprio trabalho - digno evidentemente - e que de repente são surpreendidas pelo aparecimento de uma pessoa sem passado, ou cujo passado eles desconheciam completamente, e que de repente desarruma o panorama, e isso não se perdoa. (...) Escreve os livros que quer, não escreve os livros que se supõe que os leitores quererão ler, escreve os livros que quer escrever. E para remate de tudo isto, ainda por cima, dão-lhe o Prémio Nobel. Você crê que isso se perdoa?
....................
Publicado inicialmente em 08 de dezembro de 2010, no Diário de Notícias. Aqui.