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Imagem: DN Online.

A quilómetros de distância, em Lanzarote, José Saramago recusa o sentimentalismo, a saudade ("Lisboa é uma abstracção") e a lágrima fácil. É mais uma das conversas com Miguel Gonçalves Mendes que não chegaram a entrar no filme 'José e Pilar' (actualmente em exibição).

O José não tem saudades de Lisboa?

Não. O que é isso de ter saudades de Lisboa? Quando tenho de lá ir, vou, estou bem lá, tenho casa. Mas porquê estar aqui [em Lanzarote] a suspirar por Lisboa? Além disso, haveria sempre de perguntar de que Lisboa estamos a falar, porque Lisboa é uma abstração.

Mas é uma abstração muito bem feita, diga-se de passagem.

É tão Lisboa a Praça do Comércio como os bairros da periferia...

Sim, mas a sua Lisboa, não tem saudades da sua Lisboa? Ainda por cima o José estudou profundamente Lisboa...

Não, quer dizer... não estudei profundamente Lisboa. Como tive de escrever um livro não sobre Lisboa mas em que efectivamente Lisboa é de alguma forma personagem, digamos que fiz o melhor que sabia, o melhor que podia. Posso viver fora de Lisboa perfeitamente, sem nenhum problema. Mas temos lá uma casa, e quando chegamos, mal abrimos a mala, estamos em casa outra vez. Além disso, nós somos muito mais filhos de um tempo do que de um lugar. E Lisboa está no mesmo sítio, mas não é a mesma cidade. De modo que quando eu tive de trabalhar n' O Ano da Morte de Ricardo Reis, no fundo eu trabalhava em parte sobre a minha própria memória de uma época, que era o ano de 1936. Era mais o tempo que o lugar.

Mas esteve lá 60 anos, não foi?

Nós viemos para aqui em 93, portanto eu tinha 70 anos.

Há uma rotina de 70 anos...

Sim, claro, mas é uma rotina de 70 anos que não resultou em laços desse tipo. Não vale a pena a gente romantizar as coisas; elas são muito menos românticas do que às vezes nós gostaríamos que fossem... Agora, estamos a chegar aqui, realmente, a um parque, a um parque eólico. Quem haveria de dizer que o deus Eolo daria, enfim, o nome a estas coisas? Aqui estão os moinhos.

Mas eu tenho ideia de que nos seus livros o José também explorou algumas vezes estas temáticas da saudade.

Da saudade?! Não.

Não é no sentido bacoco da coisa, é nesse sentido emotivo.

Até neste último livro [As Pequenas Memórias], que é um livro de memórias de quando eu era garoto, não há sentimentalismo nenhum. Há um esforço de objetividade. Eu recuso-me a cair na lágrima fácil, no miserabilismo, oh pobre de mim quanto eu sofri... não, não, isso não é comigo.

Mas há o preservar de uma memória, não é?

Lisboa tornou-se bastante feia.
 
 
 
 
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Publicada inicialmente no dia 07 de dezembro de 2010 no Diário de Notícias. Aqui.