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O ano de 1993
Poesia, 1975



Capa da edição brasileira de O ano de 1993 publicada pela Companhia das Letras
Capa de Hélio de Almeida com imagem de Arthur Luiz Piza
La Balade du petit Carré IV, 1973, gravura em metal, goiva [gravure sur cuivre, gouge]
38X28,5cm Museu de Arte Moderna de São Paulo
Reprodução de Rômulo Fialdini





























No princípio deste século, as investigações dos formalistas russos e de todos os seus discípulos deram um contributo de tal modo decisivo para a nova maneira de interpretar a produção literária que hoje é possível conceber a leitura das imagens poéticas exclusivamente ao nível da cadeia verbal que constituem, ou seja, na sua pura literalidade. Mas hoje sabemos também que a liberdade poética, levada ao extremo da objectivação, conduziu à poesia concreta ao desenvolvimento do poema visual, enquanto a poesia dita tradicional, lírico-discursiva, seguiu o caminho da ficção, identificando-se com a prosa.

Estas distinções, que reacenderiam a querela dos géneros, se os problemas literários pudessem ainda provocar actualmente qualquer discussão acesa, são decerto académicas, mas talvez toda a literatura se tenha academizado e talvez o próprio conceito de "literatura" deva ser considerado como uma concepção do passado, correspondendo a uma ideologia que está desajustada da realidade do homem moderno.

Se existe, esse é o problema que se depara a qualquer escritor contemporâneo, que seja ao mesmo tempo "artista" e "homem do seu tempo", posição tanto mais aguda para um escritor português revolucionário, que terá de enfrentar plenamente o conflito dos elementos que conduzem a situações de grande complexidade, geradas, por um lado, pela ambiguidade natural da escrita, por outro, pelo seu carácter de solidariedade histórica.

A propósito da escrita actual, Roland Barthes acentua que "há um movimento de rotura e o dum advento, há o próprio desenho de toda a situação revolucionária, cuja ambiguidade fundamental reside em ser necessário que a Revolução extraia do que quer destruir a própria imagem do que quer possuir". Assim, a "alienação da História" e o "sonho da História" pesam gravemente sobre o escritor contemporâneo, empenhado na construção/destruição dum presente cuja incerteza ele talvez procure compensar pelo acto criador, pela produção do objecto estável, autónomo. Seria esse um dos aspectos que a necessidade de criar poderá ter adquirido na actualidade, e na dialéctica de ostentação e dissimulação implícita no acto da escrita, em que toda a imagem é, como diz Gaston Bachelard, um aumentativo psíquico, a imagem literária adquire o privilégio de agir simultaneamente como imagem e como ideia.

Sem dúvida O ano de 1993, participa desses dois aspectos: aqui imagem e ideia, identificando-se plenamente, permitem aquela leitura literal preconizada para a interpretação do texto poético, mas, por outro lado, sendo um texto formalmente clássico, podemos dizer, na medida em que se trata duma poesia lírico-discursiva, participa igualmente do domínio da ficção, pois toda a literatura é ficção, como toda poesia é simultaneamente enredo, drama, representação e até encenação (como o demonstrou Eisenstein a propósito de Puchikine), participando da História como texto simbólico, como narrativa exemplar.

É por isso que haveria em primeira lugar a tentação de estabelecer um paralelo com 1984, de George Orwell, essa célebre Utopia, mas a aceitação dos princípios da análise estrutural, que nos alerta para as diferenças entre os géneros, distinção acadêmica que talvez devamos aceitar, pelo menos como hipótese de trabalho, impede-nos de seguir esse caminho. E não seria só a aceitação desses princípios o que nos levaria a tal decisão, pois entre estas duas obras há diferenças irredutíveis, como a extensão, o conteúdo ideológico e até o tema propriamente dito. 1984, embora possamos dizer que, como Utopia, se pode formalmente referir até a um Thomas Moore, por outro lado, cabe perfeitamente dentro da moderna classificação de "literatura de antecipação", necessitando, acima de tudo, duma leitura "alegórica", enquanto 1993, como texto poético que é, necessita duma leitura "literal".

O ano de 1993 poderia ser definido como um poema épico em nova forma, como já o fora a Mensagem de Fernando Pessoa, mas mais uma vez 1993 difere, quer pelo conteúdo quer pela forma. Em 1993 o aspecto mais dominante será o encadeamento retórico/formal, a "montagem textual" (técnica pós-cinematográfica), a verbalização da dinâmica do discurso (pós-surrealista), que formalmente o definem como texto poético contemporâneo. O seu carácter épico, menos que da forma, vem-lhe de seu tom, do seu tema, cheio de ressonâncias bíblicas, algo profetizante até, que exige uma vasta tomada de consciência colectiva ou da experiência colectiva.

Essa tomada de consciência foi, de resto, intenção do Autor, pudemos confirmá-lo. Essa obra que, escrita em 1974, se lê como um grito contra o estado de sítio da consciência em que viveram os Portugueses, está marcada por uma experiência que não é só a dos últimos cinquenta anos mas a experiência milenária da luta contra a opressão. É um texto que, embora voltado nitidamente para o presente

(E agora é necessário ir ao deserto destruir a pirâmide que os faraós fizeram construir sobre o dorso dos escravos e com o suor dos escravos

E arrancar pedra a pedra porque faltam os explosivos mas sobretudo porque este trabalho deve ser feito com as nuas mãos de cada um),

aponta para o reiterado futuro, que se apresenta como uma montanha de destroços que "Uma guerra do desprezo" não pode manter imóvel: é uma montanha que é preciso mover, talvez com uma fé de que ainda não ouvimos falar, uma coragem desusada, sem desgaste.

É assim que reencontramos o poeta na sua função histórica de "dinamizador da consciência pública", essa revolução permanente que nenhuma Revolução dispensa.

Intensamente visual, 1993 é também por isso mesmo uma obra moderna, apontando para um possível caminho futuro em que a imagem, literalmente e a todos os níveis, se tornará o eixo da comunicação.
 
 
[HARTLEY, Ana. Recessão crítica ao O ano de 1993. In: Revista Colóquio/Letras. Recessões críticas, n.31, maio de 1976, p.87-88]