Provavelmente alegria
Poesia, 1970
Poesia, 1970
Capa da edição portuguesa de Provavelmente alegria |
"Em Provavelmente Alegria, assistimos a um prolongamento da problemática poética enunciada, com algumas modificações estruturais: as 98 composições que constituem o livro sucedem-se como um único e longo poema, de andamentos vários e motivação diversificada, mas de certo modo catalisada na já conhecida dinâmica amor/mar, a que se junta uma terceira componente, a do fogo, elemento devorador das coisas e dos seres que de modo complexo produz essa anulação de plenitude que é o silêncio, disseminando-se em referências múltiplas à figuração da estrela, motivo igualmente importante em toda a obra de José Saramago: «Assim o caos / Devagar se ordenou entre as estrelas», 14; «Lá no centro do mar (...) / (...) / Meu amor, minha ilha deserta, / (...) as mãos do vento, / Erguem ondas de fogo em movimento», 87.
Provavelmente Alegria é um livro cujo título aparece curiosamente fragmentado no seu segundo texto, Provavelmente (onde o tema da viagem aflora: «Que viagem prometida nos espera?»), sendo o primeiro um «Poema para Luís de Camões», e no quinto a contar do fim, Alegria (glorificação naturalista estilizada do encontro amoroso que alia o recorte popular da redondilha à tonalidade eufórica da ode renascentista de tipo anacreôntico), que anexa como excessos uma viagem no teu corpo», uma «água lustral (...) de sonhos e verdades», um «branco peito»- «cristais» ou «rosas» que sete versos desenvolvem na «macieza», na «sede» e na «vertigem», de um decadentismo com ressaibo a barroco: «Quando ao vento do sangue dobra as águas / E em brancura vogamos, mortos de oiro», e um final, Palma com palma, que são, no seu conjunto, alguns dos melhores poemas de amor de José Saramago. Este livro, onde o rigor da construção e a economia de meios é mais sensível, apresenta além disso um conjunto de textos extremamente interessantes para o estudo de uma poética geral de José Saramago: quatro poemas em verso livre de extensão relativamente regular, onde assoma o gosto pelo versículo, que irá mais tarde comandar a composição de O Ano de 1993.
Provavelmente Alegria prolonga, como referimos, a problemática poética exposta em Os Poemas Possíveis - mas anuncia igualmente vertentes novas e fecundas no itinerário do autor. «Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos. / Depois saberei tudo», 55. Esta preocupação gnosiológica assente na comunicação plena e indizível dos homens busca a sua expressão na lisura una que a forme, inconsútil e profunda, nada e criada, miragem eterna como penosa construção constante: «cada verso uma pedra», «um dorso de pedra que se arranque / Do poema profundo, dos ossos do chão». Uma construção do homem que é, desde logo, o sentido fundamental de toda a obra de José Saramago."
[SEIXO, Maria Alzira. O Essencial sobre José Saramago. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p.10-12]
*
*
Sem dúvida que, em face da proliferação das poéticas da
ruptura e da descontinuidade, a que, latamente, podemos chamar
experimentalistas, poéticas que, aliás, correspondem à legítima necessidade de
fundar uma nova linguagem poética, os poetas que se atêm às formas tradicionais
se encontram numa situação cada vez mais incómoda, que exige, além de coragem,
profunda consciência e segurança no uso de uma linguagem em que se verá logo o
postiço, o convencional, o ultrapassado só porque o poeta utilizou uma via
tradicional aparentemente mais segura, mais fácil, menos arriscada. “Consciência”
e “segurança”, palavras que acabámos de empregar, são precisamente dois termos
definidores da “Arte Poética” de José Saramago, poema incluído no seu primeiro
livro Poemas Possíveis (1966), de que
transcrevemos os versos finais:
Não se esquece o poema
nem se adia
Se a força da palavra
for moldada
Em ritmo, segurança e
consciência
A bem dizer, a grande linha divisória que se pode traçar entre
os poetas modernos não é a que estrema tradicionalistas e experimentalistas,
mas sim a que divide a poesia que não abdica da inteligibilidade, com todas as possíveis
ambivalências, irisações de sentidos, multiplicidade significativa, e a que
cultiva deliberadamente uma linguagem de irrecuperável significação, para além
dos limites da sensibilidade e do entendimento. Este é o grande salto que
certos poetas – muitos deles grandes, autênticos e genuinamente modernos – não dão,
porque crêem decerto que o poeta tem a função de dizer, dizer o essencial, o mundo, a natureza. E se porventura
mesmo esses acusam a dificuldade ou a impossibilidade da palavra que se estabeleça
a relação com o essencial, a verdade é que o valor de tal poesia reside ainda
na sua tensão para dizer a impossível
palavra, conferindo-lhe essa extrema dificuldade ou impossibilidade um valor
que podemos considerar ontológico, pelo qual a palavra poética mantém a sua
coerência interna e luminosidade, negando-se à pura arbitrariedade.
É decerto esta consciência da dificuldade ou impossibilidade
como raiz da própria criação constitui uma característica da modernidade,
podendo chegar às situações-limite de um Pessoa, de um Beckett ou de um Artaud.
Mas não nos apresenta um poeta como Ponge uma leitura do mundo e das coisas que
desmente essa crucial dificuldade? Porém, no autor de Partis-pris des choses existe, como naqueles, a mesma constante “mise
em question” da linguagem que a arranca ao imobilismo e à inércia a fim de captar
a realidade num sistema diferente, extraindo assim das mesmas palavras outros
sentidos, o que conduz a uma permanente invenção do mundo.
Os limites bem visíveis da poética de José Saramago, em cujo
léxico abundam termos como rosas, nardos,
cristais, grinaldas, corais, estrelas, orvalho, não serão decerto os que
podem antever obrigratòriamente para uma linguagem de matizes e formas
francamente clássicos, porquanto nos cabe, antes de qualquer reparo, declarar
que muitos dos seus poemas, sobretudo em Poemas
Possíveis, um belo livro de um poeta amadurecido, são de uma qualidade inegável
que transcende e torna falsa qualquer discussão sobre a sua actualidade. Mas se
esta justiça lhe prestamos, não podemos, por outro lado, em nome daqueles
mesmos valores que pressupõem “ritmo, segurança e consciência”, como a sua “Arte
Poética” requer, deixar de notar que existem neste seu livro fraquezas que o
tornam inferior esforço de renovação temática e formal evidenciado nos poemas
em prosa “A mesa é o primeiro objecto...”, “É um livro de boa fé...” e “Protopoema”.
De um modo geral, os poemas não atingem a densidade indispensável, dando a
nítida sensação de facilidade e de uma precipitação elocutória em que se chega
ao verso final sem se ter captado algo de essencial, tudo se perdendo em
palavras. Um exemplo: “Digo pedra, essa
pedra e esse peso,/ Digo água e a luz baça de olhos vazos,/ Digo lamas
milenárias das lembranças,/ Digo asas fulminadas, digo acasos.// Digo terra,
esta guerra e este fundo,/ Digo sol e digo céu, digo recados,/ Digo noite sem
roteiro, interminada,/ Digo ramos retorcidos, assombrados.// Digo pedra no seu
dentro, que é mais cru,/ Digo tempo, digo corda e alma frouxa,/ Digo rosas
degoladas, digo a morte,// Digo a face decomposta, rasa e roxa.” Neste afã
de dizer coisas tão extremas e profundas, é evidente que tudo se perde. Talvez,
de todos os poemas deste livro, seja este o que nos dá uma sensação de maior
vacuidade, mas não se trata de uma execpção que se possa passar por alto. Tal deficiência
antolha-se-nos tanto mais imperdoável quanto é certo que José Saramago é, sem
dúvida alguma, um autêntico poeta que já escreveu muitos poemas em que “a força da palavra fo(i) moldada em ritmo, segurança
e consciência”, para empregar mais uma vez os termos de sua “Arte Poética”.
[ROSA, António Ramos. "José Saramago - Provavelmente Alegria". Colóquio - Revista de Artes e Letras. Lisboa, n.59, p.73]