Uma só prece faço, mas não a Deus

+A +/- -A
Uma só prece faço, mas não a Deus,
Que não sei onde está, se me conhece.
À memória da vida me encomendo,
Uns dizem que fatal, outros criada.
Quando o Destino não tem, nem Deus teria,
Outro poder que não lhes fosse dado.
Faço pois uma prece, e que ma oiça
A sombra que serei, resumo e resto
De quanto homem fez, foi e perdeu.
Num gesto já não meu, só de abandono,
O braço que hoje prende há-de cair.
Renasça então na palma que arrefece
A lembrança das rosas e dos seios.
Outra herança não fica que mereça
A partilha de bens na eternidade.
O seio é quanto basta, a rosa sobra
Por memória da vida terminada.


________
SARAMAGO, José. Os poemas possíveis. 3a. ed. Lisboa: Caminho, 1981.