Cadernos de Lanzarote - Diário III
Diários, 1996
[fragmento do 3º volume de Cadernos de Lanzarote]
Diários, 1996
Capa da edição portuguesa de Cadernos de Lanzarote - Diário 3 |
Os bastidores dos prêmios literários internacionais, a cumplicidade com amigos escritores como Jorge Amado, a luta contra o obscurantismo político e religioso que condena suas obras como subversivas e blasfemas, os impasses íntimos do escritor diante de seu trabalho: tudo isso está nas páginas destes diários de José Saramago, o maior autor português da atualidade, escritos entre 1993 e 1995 na pacata aldeia onde vive, em Lanzarote, uma das ilhas Canárias, ou em suas inúmeras viagens pelo mundo. Alternando a serenidade de quem já viveu muito com a indignação de quem não se cansa de lutar contra o que julga estar errado, Saramago dá neste livro um testemunho único de entrega à literatura e à vida.
5 de Outubro
A comunicação social portuguesa, em particular imprensa e rádio, comportou-se uma vez mais com acendrado patriotismo, apregoando aos quatro ventos as qualidades que exornam aqueles a que chama, num rasgo verdadeiramente criativo, "nomeados" ou "candidatos" ao Prémio Nobel de Literatura. Está visto que até hoje nenhum escritor português conseguiu embolsar o famoso cheque e dependurar o colorido e dourado diploma na parede do seu escritório, a culpa tem-na a Academia Sueca, e duplamente a tem porque nem mostra conhecer a literatura que se fez e faz no nosso jardim à beira-mar plantado, segundo a justa e perfumada definição do imortal Tomás Ribeiro, nem cumpre a obrigação elementar de ler os jornais e escutar a rádio de Portugal, os quais, desesperados, vêem, em cada ano, lançados ao desprezo os seus patrióticos esforços de informação e persuasão das duras cabeças nórdicas. Desatentos, desagradecidos, os suecos vão dando o prémio a quem muito bem entendem, após lerem, ao longo de cada ano, atentamente, os jornais do país que já tinham na ideia contemplar. No ano passado, por exemplo, sei-o de boa fonte, os académicos de Estocolmo não fizeram outra coisa, de manhã à noite, que ler jornais japoneses... E durante este ano, de boa fonte o soube, todos eles tiveram de frequentar cursos acelerados de língua irlandesa para poderem entender as explicações que as emissoras de rádio da verde Érann preventivamente iam dando sobre os méritos literários e as virtudes pessoais de Seamus Heaney... De tudo isto há que retirar uma conclusão: escritores, temo-los (sem dúvida magníficos), literatura, temo-la (obviamente estupenda), a nossa pouca sorte é não ter ainda a comunicação social portuguesa encontrado a maneira de se fazer ouvir em Estocolmo.