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Cadernos de Lanzarote - Diário IV
Diários, 1997





Capa da edição portuguesa de Cadernos de Lanzarote - Diário 4

































Mais uma vez Saramago a contar os dias pelos dedos, e a meditar sobre os eventos, as pessoas, as paisagens, as políticas. Um ano inteiro dentro de um livro — o Diário IV — escrito na aspereza de Lanzarote, mas onde cabe o mundo que Saramago visita em cada dia, nem que seja através das notícias que lhe enviam de milhentos lugares.


8 de janeiro

Leio (oxalá não seja verdade, oxalá seja só um poisson d'avril caído no anzol antes de tempo...) que o retrato do primeiro-ministro António Gueterres vai ser colocado nas paredes das repartições públicas do país. Pensava eu que nos havíamos curado destas demonstrações iconográficas depois de tantos anos a aturar deus-pátria-família e seus derivados, com o sábio varão de Santa Comba a fiscalizar do alto os impostos que pagávamos à boca do cofre ou com juros de mora, sob a presidência, conforme as épocas e os mandatos, do bigode mosqueteiro de Carmona, do ar de quero-mas-não-posso de Craveiro Lopes, da expressão transcendentalmente entupida de Américo Tomás... Amanhã (aclaro, para não me chamarem de agoireiro, que estou a empregar o termo da dicionarizada acepção do "tempo futuro, mas incerto"...) é o primeiro-ministro compelido pelas urnas a deixar para outro político as funções que agora desempenha, e aí vamos ter nós os funcionários, de norte a sul, a despendurar um retrato e pendurar outro, porquanto o sucessor, encontrando aberto o caminho para a glória mural, não há-de querer perder a oportunidade de subir, também ele, a esse céu. E por falar em céu: se ainda estivéssemos no tempo dos crucifixos em lugares públicos oficiais, aceitaria um primeiro-ministro católico o escândalo de ter o seu retrato ao lado da imagem do Nazareno? Por simples amor da neutralidade, eu, que sou laico, comunista e republicano, optaria pelo busto feminino clássico, de barrete frígio ou lenço à moda do Minho, se não fosse, como aconteceu já algumas vezes, estar a querida República a degenerar perigosamente e o busto a continuar o mesmo...

[fragmento do 4º volume de Cadernos de Lanzarote]