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Contar a vida de todos e de cada um*



Venho falar-vos de História e de Ficção. Venho falar-vos, sobretudo, das ambíguas relações que vêm mantendo nos últimos tempos, uma com a outra, a Ficção e a História, ao ponto de já nos perguntarmos se não estará a haver na História demasiada Ficção e, por outro lado, equilibrando a dúvida, se haverá na Ficção suficiente História... Parecer-vos-á talvez isto um mero jogo de palavras, mas espero, se conseguir levar ao fim os meus raciocínios antes que se acabe a vossa paciência, vir a reunir umas quantas razões que defendam o tema e o absolvam das primeiras suspeitas.

Consideremos, em primeiro lugar, a História como Ficção. Trata-se de uma proposição aparentemente temerária, que poderia mesmo introduzir de modo sub-reptício a insinuação de que não há diferenças substanciais entre Ficção e História. Concluiríamos, neste caso, provavelmente fazendo nascer um novo caos, que tudo no mundo seria Ficção, que nós próprios não seríamos mais do que produtos sempre cambiantes de todas as ficções criadas e a criar, tanto as nossas como as alheias. Seríamos, simultaneamente, os autores e as personagens de uma Ficção Universal sem outra realidade do que ter-se constituído como uma espécie de mundo paralelo. Embora reconheça existir no que acabo de dizer algo do espírito de paradoxo, tentarei pôr do meu lado alguns argumentos acaso dignos de atenção.

Desde logo, de acordo com esta hipótese, a primeira tarefa do historiador seria seleccionar factos, trabalhando sobre aquilo que denominarei tempo informe, quer dizer, esse Passado a que apeteceria chamar puro e simples, se isso não fosse uma contradição em termos. Recolhidos os dados considerados necessários, a segunda tarefa do historiador seria organizá-los de modo coerente, obedecendo ou não a objectivos prévios, mas, em qualquer caso, transmitindo sempre uma ideia de necessidade inelutável, como a expressão de um Destino. Não esqueçamos que tais selecções de factos se exercem, em regra, sobre consensos ideológicos e culturais concretos, os quais fazem da História, entre os diversos ramos do conhecimento, o menos capaz de surpreender.

É indiscutível que o historiador estará obrigado, sempre e em todos os casos, a escolher factos entre factos. É igualmente óbvio que, ao proceder a essa escolha, ele terá de abandonar deliberadamente um número indeterminado de dados, algumas vezes em nome de razões de classe ou de Estado, ou de natureza política conjuntural, outras vezes acatando, conscientemente ou não, as imposições duma estratégia ideológica que necessite, para justificar-se, não da História, mas de uma História. Esse historiador, na realidade, não se limitará a escrever História. Ele fará História. O historiador, desde que consciente das consequências políticas e ideológicas do seu trabalho, tem de saber que o Tempo que assim esteve a criar vai aparecer aos olhos do leitor como uma lição magistral, a mais magistral de todas as lições, já que o historiador surge ali como definidor de um certo mundo entre todos os mundos possíveis. Nesse outro acto de Criação, o historiador decide o que do Passado é importante e o que do Passado não merece atenção.

Algumas vezes, no entanto, este poder autoritário parece não ser bastante para libertar-nos daquele horror ao vazio que, sendo uma das características dos povos primitivos, vem, afinal, a encontrar-se em não poucos espíritos cultivados. Um historiador como Max Gallo começou a escrever romances para equilibrar pela Ficção a insatisfação que lhe causava o que considerava uma impotência real para expressar na História o Passado inteiro. Foi buscar às possibilidades da Ficção, à imaginação, à elaboração sobre um tecido histórico definido, o que sentira faltar-lhe como historiador: a complementaridade duma realidade. Não estaria muito longe deste sentimento, suponho eu, o grande George Duby, quando, na primeira linha de um dos seus livros, escreveu: Imaginemos que... Precisamente aquele imaginar que antes havia sido considerado um pecado mortal pelos historiadores positivistas e seus continuadores de diferentes tendências.

Tenho ouvido que existe uma crise da História, tão grave que ameaça matá-la, ou a matou já... Se assim é – e eu não sou ninguém para ousar pronunciar-me sobre tão transcendente questão –, interrogo-me se tal crise não será causa directa, ainda que não única, da ressurreição, em condições diferentes e com diferentes resultados estáticos, daquilo a que, erradamente a meu ver, continuamos a chamar «romance histórico». E também, se não se tratará, afinal, de uma expressão particular doutra crise mais ampla: a da representação, a crise da própria linguagem como representação da realidade.

Ora, se a crise existe (a da História, ou outra, geral, de que aquela seria apenas uma manifestação parcelar), se em tudo o que nos rodeia é possível encontrar conexões com esta impressão de fim de um tempo que andamos a sentir – então talvez se torne mais claro por que nos estamos voltando para o romance dito histórico, levados por uma ansiedade que decerto faria sorrir com algum desprezo intelectual, se ainda fossem deste mundo, os que, no século passado, fervorosamente acreditavam no Progresso. Olhar-nos-iam com piedade, perguntariam como foi possível que, das sólidas certezas que eles tinham, tivesse nascido esta insegurança que nós temos.

Sou autor de um livro que se chama Viagem a Portugal. Trata-se de uma narrativa de viagem, como tantas que se escreveram nos séculos xvii e xviii, quando a Europa começou a viajar dentro da Europa, e os viajantes descreviam as suas experiências e aventuras, produzindo de caminho alguns documentos literários preciosos, inclusive para o estudo da história das mentalidades. Foi com um espírito afim que viajei por Portugal, foi igualmente com esse espírito que escrevi Viagem a Portugal.

O livro não é, portanto, um roteiro, um guia de viajantes, embora, necessariamente, contenha muito do que se espera encontrar nesse tipo de textos. Fala-se de Lisboa, do Porto, de Coimbra, das cidades do meu país, fala-se das aldeias, das paisagens, das artes, das pessoas. Imaginemos agora que o autor resolveu fazer nova viagem para, terminada ela, escrever outro livro, mas que, nessa segunda viagem, não visitará nenhum dos lugares por onde tinha passado antes. Quer dizer, nesta segunda viagem, o autor não irá a Lisboa, não irá ao Porto, não irá a Coimbra, não irá a nenhum lugar onde já tivesse estado. Contudo, parece-lhe que, com toda a legitimidade, poderá tornar a dar, a esse novo livro, o título de Viagem a Portugal, uma vez que de Portugal continua a tratar-se... Levemos mais longe o jogo e imaginemos que o autor fará uma terceira, uma quarta, uma quinta, uma décima, uma centésima viagem, obedecendo sempre ao princípio de nunca ir aonde foi antes, e que escreverá outros tantos livros, em que, por fim, inevitavelmente, deixará de haver qualquer alusão a nomes de lugares habitados, nada a não ser a simples descrição de uma imagem, aparentemente sem quaisquer pontos de identificação com a entidade cultural e histórica a que damos o nome de Portugal. A pergunta derradeira será esta: pode ainda o centésimo livro chamar-se Viagem a Portugal? Respondo afirmativamente: podemos e devemos chamar-lhe Viagem a Portugal, mesmo que o leitor não consiga reconhecer nele, por mais atento que esteja à leitura, o país que lhe foi prometido no título...

Este jogo, ainda que à primeira vista não o pareça, tem muito que ver com a relação que mantemos com a História. Diria eu que a História, tal corno foi escrita, ou – repetindo a provocação – tal como a fez o historiador, é o primeiro livro. Não esqueço, obviamente, que o mesmo historiador poderá fazer, ele próprio, outras viagens ao tempo por onde antes viajou, esse tempo que, graças à sua intervenção, vai deixando de ser tempo informe, vai passando a ser História, e que as novas visões, os novos pontos de vista, as novas interpretações irão tornando cada vez mais densa e substancial a imagem histórica que do Passado nos vinha sendo dada. Nas grandes zonas obscuras que sempre existirão, mesmo no que se supõe já conhecido, é que o romancista terá o seu campo de trabalho.

Creio bem que o que está subjacente a esta nova inquietação é a consciência que temos da impossibilidade duma reconstituição plena do Passado. E que, não podendo reconstituí-lo, somos tentados – sou-o eu, pelo menos – a corrigi-lo. Quando digo corrigir, corrigir o Passado, não o é no sentido de emendar os factos da História (essa nunca poderia ser a tarefa de um romancista), mas sim, se se me permite a expressão, introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até aqui parecia indiscutível; por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. Certamente se argumentará que se trata de um esforço gratuito, inútil, uma vez que o que hoje somos não resultou do que poderia ter sido, mas do que efectivamente é . No entanto, é minha convicção de que se a leitura histórica feita pelo romance for uma leitura crítica, essa nova operação poderá provocar uma espécie de instabilidade, de vibração temporal, uma perturbação causada pelo confronto entre o que sucedeu e o que poderia ter sucedido, como se os factos começassem, saudavelmente, a duvidar de si mesmos...

São duas as atitudes possíveis ao romancista que escolheu, exclusiva ou acidentalmente, os caminhos da História: a primeira, discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir, ponto por ponto, os factos históricos conhecidos, sendo a ficção, nesse caso, mera servidora duma fidelidade que se deseja a salvo de acusações de falta de rigor de qualquer tipo; a segunda, mais ousada, levará o autor a entretecer num tecido ficcional que se vai manter predominante os dados históricos que lhe servirão de suporte. Num caso como no outro, porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, aparentemente inconciliáveis, serão harmonizados pela instância narradora.

Está aqui, a meu ver, a questão essencial. Conhecemos aquele narrador que se comporta de um modo imparcial, que vai dizendo o que acontece, conservando sempre a sua própria subjectividade fora dos conflitos de que é espectador e relator. Mas há um outro tipo de narrador, muito mais complexo, que não tem uma voz única: é um narrador que parece substituível, um narrador que o leitor vai reconhecendo constante ao longo da narrativa, mas que muitas vezes lhe dará a impressão estranha de ser outro. Digo outro porque ele variou de ponto de vista, podendo chegar até a criticar o ponto de vista daquele que foi primeiro narrador. Esse narrador instável será também o instrumento ou o sopro de uma voz colectiva. Será igualmente uma voz particular que não se sabe donde vem e que se recusa a dizer quem é, ou usa de arte bastante para levar o leitor a sentir-se identificado com ele, a ser, de algum modo, ele. E pode, enfim, mas não explicitamente, ser a voz do próprio autor: este, que fabricou todos os seus narradores, não está reduzido a saber só o que as suas personagens sabem, ele sabe que sabe e quer que isso se saiba... O que aconteceu, o que acontece e o que acontecerá.

Graças a esta forma de conceber, não apenas o tempo histórico, mas o Tempo tout court projectando-o, por assim dizer, em todas as direcções, autorizo-me a pensar que o meu trabalho no campo do romance é capaz de produzir algo como uma oscilação contínua em que o leitor directamente participa, graças a uma contínua provocação que consiste em ser-lhe negado, por processos que são sempre de raiz irónica, o que primeiro lhe havia sido dito, criando no seu espírito uma impressão de dispersão da matéria histórica na matéria ficcionada, o que não só não significa desorganização de uma e de outra, como aspira a ser uma reorganização de ambas.

Admito que a declaração inicial, de ser o historiador um seleccionador de factos, pareça demasiado crua e chocante. Direi, então, em termos mais técnicos, citando um teórico da literatura, que «o historiador realiza uma rarefacção do referencial, criando uma espécie de malha larga, perfeitamente tecida, mas que envolve espaços de obscurecimento ou de redução dos factos». Ora, deste ponto de vista, parece-me bastante pertinente dizer que a História se nos apresenta como um parente próximo da Ficção, porquanto, ao «rarefazer o referencial», procede a omissões voluntárias de que irão resultar modificações no panorama do período observado, com a forçosa consequência do estabelecimento de relações diferentes entre os factos «sobreviventes». Aliás, é interessante verificar como certas escolas históricas recentes começaram a sentir-se inquietas quanto ao rigor efectivo duma História como a que vinha sendo feita. Lendo esses historiadores, temos a impressão de estar diante de um romancista dado aos temas históricos, não porque eles escrevam História romanceada, mas porque reflectem uma insatisfação tão profunda que, para aquietar-se, teve de abrir-se à imaginação, uma imaginação que manterá como suporte essencial os factos da História, mas que abandonará a sua antiga e exclusiva relação com eles, de sujeição resignada ao império em que se tinham instituído. Não faltará quem considere que, por esta via, a História se tornou menos científica. É uma questão em cuja discussão não me atreveria a participar. Como romancista, basta-me pensar que sempre será melhor ciência aquela que for capaz de me proporcionar urna compreensão dupla: a do Homem pelo Facto, a do Facto pelo Homem.

Quando olho o Passado, a impressão mais forte é a de estar perante um imenso tempo perdido. A História, e também a Ficção que busca na História o seu objecto, são, de alguma maneira, viagens através do tempo, percursos, definições de itinerários. Apesar de tanta História escrita, apesar de tanta Ficção sobre casos e pessoas do Passado, é esse tempo enigmático, a que chamei perdido, que continua a fascinar-me. Para dar um só exemplo, interessa-me, claro está, a batalha de Austerlitz, mas interessar-me-ia muito mais conhecer as pequenas histórias que vieram a ser consequência dessa História de formato grande, alcançar uma compreensão real das inúmeras e ínfimas histórias pessoais, desse tempo angustiosamente perdido e informe, o tempo que não retivemos, o tempo que não aprendemos a reter, a substância mental, espiritual e ideológica de que afinal somos feitos.

É fácil dizer – eu próprio cedi algumas vezes à comodidade de tão flagrante tautologia – que, sendo certo que fora da História nada existe, toda a Ficção é, e não pode deixar de ser, «histórica». Mas não têm faltado espíritos sarcásticos para insinuar que um romancista que trabalhe literariamente sobre a História procede assim por necessidade de evasão, por incapacidade de entender o Presente e de se adaptar a ele, do que resultaria ser o «romance histórico» o mais acabado exemplo de fuga à realidade. É uma acusação tão fácil quanto habitual. Pelo contrário, é precisamente uma consciência intensíssima, dolorosa, do Presente, que leva este romancista a olhar na direcção do Passado, não como um inalcançável refúgio, mas para conhecer-se melhor. Não estou a dizer nada de original. No seu livro O Mediterrâneo, Fernand Braudel escreve, com a simplicidade duma revelação, algumas linhas que resumem quanto aqui tenho dito: «A História não é outra coisa que uma constante interrogação dos tempos passados, em nome dos problemas, das curiosidades, e também das inquietações e angústias com que nos rodeia e cerca o tempo presente».

Observe-se como tal definição poderia ser transportada, palavra por palavra, para o Romance. Direi igualmente que o «romance histórico», também ele, «não é outra coisa que uma constante interrogação dos tempos passados, em nome dos problemas, das curiosidades, e também das inquietações e angústias de que nos rodeia e cerca o tempo presente». Assim sendo, História e Romance seriam tão-somente expressões da mesma inquietação dos homens, os quais, como múltiplos Janos bifrontes, voltados a uma e a outra parte, e do mesmo modo que tentam desvendar o oculto rosto do Futuro, teimam em procurar, na impalpável névoa do Tempo, um Passado que constantemente se lhes escapa e que hoje, talvez mais do que nunca, quereriam integrar no Presente que ainda são.

Benedetto Croce escreveu um dia: «Toda a História é história contemporânea». É também à luz destas palavras reveladoras que tenho vindo a realizar o meu trabalho de escritor, embora esteja pronto a reconhecer que o Mestre merecia um aluno mais capaz e que a lição teria o direito de esperar frutos mais saborosos.

José Saramago



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*Fonte: Site da Fundação José Saramago


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