O gosto de bater
Irmãos, tive um, e morreu cedo. Não sobrou tempo, nem a mim nem a ele, para praticar aquele gosto da agressão fraternal que transforma o mais novo em caixa de rufo do mais velho, quando não é este, precisamente porque mais forte, que se guarda de usar os músculos e atura com paciência. Se excetuarmos as saudosas púrrias de bairro suburbano que em alguma coisa contribuíram para a minha educação, nada aprendi das artes bélicas, tanto mais que a tropa me veio a rejeitar na hora importantíssima da inspeção miliatar, com fundamento numa clamorosa falta de proporção entre peso e altura. O caso, se bem entendi, tinha que ver com um tal índice de Pinet, ou coisa parecida. Porém, paguei pontualmente e em paz a taxa, embora com alguns remordimentos de consciência e despeito de quem se viu repelido.
Quer isto dizer que, não tendo eu feito recruta e havendo antes solenemente embirrado com a instrução de espingarda e metralhadora que pressurosos oficiais me pretendiam inculcar durante fátuos recreios da Mocidade Portuguesa, não cheguei a acordar e muito menos alimentei aquelas tendências agressivas que nos lugares de parada e quartel se espevitam e fomentam. O que, dito fico, não é incompátivel com o meu grande respeito pela instituição: como qualquer burguês sentimental, sinto os arrepios da ordem ao ver passar tropa, bandeira, terno de cornetins e, nos tempos mais modernos, chaimites. Posso mesmo acrescentar que lhes devo, tomados em conjunto ou isolados, alguns momentos de compensadora comoção depois do 25 de Abril. Como tantos outros portugueses, também eu acreditei que em Portugal acontecera o grande milagre da história dos povos: a abolição das barreiras entre o povo fardado e povo paisano. Claro está que nos enganamos todos. Tudo então parecia igual, belíssima a nossa lição ao mundo, e eis que hoje por muito felizes nos devemos dar quanto os militares consentem em ficar-se por um pateralismo condescendente, pelo ar de quem deixa brincar as crianças, ao mesmo tempo que vão reivindicanto papéis de árbitro que não é seguro sejam realmente merecidos, ou justificáveis por razões de mera autoridade.
Porém, considerando o que se vai vendo, ouvindo e lendo, até o paternalismo passou à história. Agora, na conversa de um só que é a relação entre miliatares e civis, a ameaça tornou-se tão fácil como uma ordem de sentido, a promessa repressiva tão desenvolta como uma continência. Curioso é que, perseverantes na imemorial tradição que sempre viu o poder das armas ao lado de quem detinha as armas do poder, repressão e ameaça sejam dirigidas apenas e sempre contra o setor da população: as classes trabalhadoras. Quanto a capitalistas, latifundiários, exploradores diversos, gente pelo contrário benquista e conviva de banquetes, benesses, comendas em geral concórdia, esses estão e sempre estiveram a salvo de coronhadas e mais agressões. Fez parte de que pareceu milagre ver durante meses o poder militar ao lado do povo, tentando compreendê-lo, tentando compreender-se a si próprio, duas ignorâncias postas a frente à procura de remédio. Vivemos o milagre, sonhamos, acordamos, e não era dia. Noite ainda não será, pois não, mas estas sombras parecem-se muito com o crepúsculo da tarde.
Acerca do gosto de bater que ornamenta a Polícia e Guarda Republicana, não há quem duvide. Foram treinados para isso, condicionadas, manipuladas ideologicamente. Depois do breve eclipse do 25 de Abril, aí estão elas outra vez, fresquíssimas e sabedoras, com mais ódio no coração e uma grande vontade de desforra. Julgadas pelos seus atos, polícia e guarda não servem para muito mais do que iso, ou pelo menos nada há que pareçam fazer tanto gosto. É o nosso fado.
Mas, pelos vistos, uma repressão assim bastava. Terceira força promete de agora entrar na competição da violência armadíssima, eficaz, operacional. É essa força, se tomarmos como boas e sãs as recentes declarações do comandante da Região Militar Centro, é essa força, repito, o Exército.
Gravíssimas palavras foram ditas, talvez ainda involuntariamente paternalistas (se admitirmos que os portugueses são todos uns garotos e o brigadeiro pai de nós todos), ou perigosamente conscientes: "Se nos obrigarem a bater, temos mesmo de bater, embora contrariados. Mas estou convencido que, se bater a primeira vez, ou até a segunda vez, não será preciso chegar à terceira. Seremos, quando muito, obrgados a fazê-lo uma ou duas vezes e nada mais." Este recado brigadeiral, assim displicente, assim sobranceiro, com o seu ar contabilizante, é para os trabalhadores do Alentejo e do Ribatejo, para a Reforma Agrária.
Leio e não acreito. Espero um desmentido, e ele não vem. Aguardo um toque de bom senso, um sinal de inteligência, e é silêncio que sempre procedeu as cargas da brigada ligeira. Este país, ouça quem tiver ouvidos, está assombrado por uma gigantesca palmatória, uma nacional menina-de-cinco-olhos, suspensa sobre cabeças que querem pensar, sobre mãos que querem trabalhar. Bater uma vez? Duas vezes? Quem sabe se três serão suficientes. Ou trinta. Ou trezentas.
Ao menos, o meu irmão não me bateu. Nem eu a ele.
5 de agosto de 1977.
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SARAMAGO, José. O gosto de bater. In: Folhas políticas (1975-1998). Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
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