Este foi o regresso mais longo de José Saramago a Portugal desde que a polémica que envolveu a candidatura do seu livro O Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prémio Literário Europeu o levou para um "exílio" na ilha espanhola de Lanzarote. A atribuição do Prémio Nobel parece tê-lo feito esquecer essas mágoas, mas não amoleceu a sua visão da sociedade e da História, que continua a ser polémica. Como se pode ver nesta entrevista.
Durante dois dias, o Nobel da Literatura português sentou-se no sofá e analisou o estado do mundo.
Na única entrevista que concedeu durante a temporada passada na sua casa de Lisboa, falou muito de política, mais de literatura e também da vida e da morte. Pelo meio ficou o anúncio da criação da fundação com o seu nome e a revelação de que está a escrever um novo livro.
A união ibérica.
Este regresso a Portugal é um perdão?
O país não me fez mal algum, não confundamos, nem há nenhuma reconciliação porque não houve nenhum corte. O que aconteceu foi com um governo de um partido que já não é governo, com um senhor chamado Sousa Lara e outro de nome Santana Lopes. Claro que as responsabilidades estendem-se ao governo, a quem eu pedi o favor de fazer qualquer coisa mas não fez nada, e resolvi ir embora. Quando foi do Prémio Nobel, dei uma volta pelo país porque toda a gente me queria ver, até pessoas que não lêem apareceram! E desde então tenho vindo com muita frequência a Lisboa.
Vive num país que pouco a pouco toma conta da economia portuguesa. Não o incomoda?
Acho que é uma situação natural.
Qual é o futuro de Portugal nesta península?
Não vale a pena armar-me em profeta, mas acho que acabaremos por integrar-nos.
Política, económica ou culturalmente?
Culturalmente, não, a Catalunha tem a sua própria cultura, que é ao mesmo tempo comum ao resto da Espanha, tal como a dos bascos e a galega, nós não nos converteríamos em espanhóis. Quando olhamos para a Península Ibérica o que é que vemos? Observamos um conjunto, que não está partida em bocados e que é um todo que está composto de nacionalidades, e em alguns casos de línguas diferentes, mas que tem vivido mais ou menos em paz. Integrados o que é que aconteceria? Não deixaríamos de falar português, não deixaríamos de escrever na nossa língua e certamente com dez milhões de habitantes teríamos tudo a ganhar em desenvolvimento nesse tipo de aproximação e de integração territorial, administrativa e estrutural. Quanto à queixa que tantas vezes ouço sobre a economia espanhola estar a ocupar Portugal, não me lembro de alguma vez termos reclamado de outras economias como as dos Estados Unidos ou da Inglaterra, que também ocuparam o país. Ninguém se queixou, mas como desta vez é o castelhano que vencemos em Aljubarrota que vem por aí com empresas em vez de armas...
Seria, então, mais uma província de Espanha?
Seria isso. Já temos a Andaluzia, a Catalunha, o País Basco, a Galiza, Castilla la Mancha e tínhamos Portugal. Provavelmente [Espanha] teria de mudar de nome e passar a chamar-se Ibéria. Se Espanha ofende os nossos brios, era uma questão a negociar. O Ceilão não se chama agora Sri Lanka, muitos países da Ásia mudaram de nome e a União Soviética não passou a Federação Russa?
Mas algumas das províncias espanholas também querem ser independentes!
A única independência real que se pede é a do País Basco e mesmo assim ninguém acredita.
E os portugueses aceitariam a integração?
Acho que sim, desde que isso fosse explicado, não é uma cedência nem acabar com um país, continuaria de outra maneira. Repito que não se deixaria de falar, de pensar e sentir em português. Seríamos aqui aquilo que os catalães querem ser e estão a ser na Catalunha.
E como é que seria esse governo da Ibéria?
Não iríamos ser governados por espanhóis, haveria representantes dos partidos de ambos os países, que teriam representação num parlamento único com todas as forças políticas da Ibéria, e tal como em Espanha, onde cada autonomia tem o seu parlamento próprio, nós também o teríamos.
Há duas Espanhas
Os espanhóis olham-no como um deles?
Há duas Espanhas neste caso. Evidentemente, tratam-me como se fosse um deles, mas com as finanças espanholas ando numa guerra há, pelo menos, quatro anos porque querem que pague lá os impostos e consideram que lhes devo uma grande quantidade de dinheiro. Eu recusei-me a pagar e o meu argumento é extremamente simples, não pago duas vezes o que já paguei uma. Se há duplicação de impostos, então que o governo espanhol se entenda com o português e decidam. Eu tenho cá a minha casa e a minha residência fiscal sempre foi em Lisboa, ou seja, não há dúvidas de que estou numa situação de plena legalidade. Quanto aos impostos, e é por aí que também se vê o patriotismo, pago-os pontualmente em Portugal. Nunca pus o meu dinheiro num paraíso fiscal e repugna-me pensar que há quem o faça. O meu dinheiro é para aquilo que o Governo entender que serve.
Mas não pode negar que o olham como um deus...
Não diria tanto...
Mesmo sendo a crítica espanhola tão positiva em relação à sua obra?
Também já foi uma ou outra vez um pouco negativa - talvez devido às minhas posições políticas e ideológicas - mas de um modo geral tenho uma excelente crítica em toda a parte, como é o caso dos EUA, onde é quase unânime na apreciação da minha obra.
Fonte: DN
15/07/2006