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(O escritor fala de seu romance A viagem do elefante).


Misto de conto e de romance, o novo livro de José Saramago estará à venda a partir desta quarta-feira. O autor chamou-lhe "A viagem do elefante". A trama, inspirada num facto histórico sobre o qual poucos detalhes são conhecidos, poderia ser contada numa ou duas páginas.

Mas a arte do ficcionista, Prémio Nobel de Literatura, transformou o episódio num excelente pretexto para presentear os leitores com uma obra que reflecte, de certo modo, o seu olhar sobre a Humanidade, em que a ironia e o sarcasmo se combinam com compaixão solidária. Nunca é de mais referir que este livro foi escrito numa altura em que o autor, de 86 anos, se encontrava em condições de saúde muito precárias. Esteve para ser o último. O ponto de partida é o século XVI, numa altura em que o rei D. João III decidiu oferecer a seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria, um elefante indiano. É a história da viagem do paquiderme, desde Belém, em Lisboa, até Viena, na Áustria, que é reinventada por Saramago.

Atendendo às circunstâncias em que "A viagem do elefante" foi escrito, poder-se-á, citando uma frase do livro, atribuída ao secretário do rei, dizer que escrever, nessa altura, foi, da sua parte, um acto poético ?

Responderia, como depois no decorrer desse diálogo do secretário de Estado ele acaba por dizer, que o acto poético só se sabe depois. Não quer dizer que seja um jogo de palavras, mas é um jogo de conceitos.

Mas escrever nas circunstâncias em que o fez foi como a difícil "travessia do Isarco" protagonizada pelo elefante e comitiva?

É uma boa comparação, essa. Felizmente, atravessei-o para o lado de cá, sem as más consequências que se chegaram a temer. Porque, quando a Pilar conta que, falando com os médicos, lhes pediu que me dessem vida pelo menos por mais três meses, para que eu acabasse o livro, isto mostra até que ponto a situação era grave. Tanto mais que três meses não bastariam para concluir aquele que então seria o meu último livro. Enfim... Foi um mau bocado.

E como foi regressar à escrita depois desse mau bocado?

Com toda a naturalidade. Claro que não foi um passeio. Regressei ao livro quando saí do hospital. E saí feito uma sombra daquilo que era. Basta dizer que, quando tive alta, pesava apenas 51 quilos. Nunca fui gordo, é verdade. Mas aquele peso não era bom, pelo contrário. Agora, já peso 68 quilos, o que significa que nestes meses engordei 18 quilos. Claro que, olhando para mim, qualquer pessoa dirá que continuo magro. Mas, naquela altura, não estava magro, estava esquelético. Pele sobre osso. Mas regressei ao livro com a maior das naturalidades porque, 24 horas depois de ter saído do hospital, e de ter entrado em casa, já estava sentado a reencontrar-me com o texto e a corrigir aquilo que tinha escrito, coisa em que demorei dois dias. Ao terceiro dia, já estava a avançar na história.

Dedica este livro à sua mulher, Pilar, que, afirma, "não deixou que eu morresse". O amor pode salvar-nos?

Não. O amor pode muita coisa, mas não pode nada diante da morte. Claro que, quando digo "à Pilar que não deixou que eu morresse", faço-o porque, em primeiro lugar, ela, efectivamente, não queria que eu morresse. E, em segundo lugar, porque ela era um dos elementos desse grupo que me salvou a vida e de que fazem parte os dois ou três médicos que me assistiram. Portanto, ela foi um elemento-chave no processo que me arrancou a essa espécie de limbo em que eu, durante uns dias, diria até algumas semanas, permaneci. Estive entre um cá e um lá que durante algum tempo tardou a definir-se. Como estou aqui....

E a literatura, será que nos salva?

Também não. Nós é que temos sempre essa preocupação de algo que nos salve a vida, que resolva as grandes questões e, se for possível, as pequenas. A literatura não nos salva. Para mim, e tenho dito isto muitas vezes para surpresa de certas pessoas, escrever é um trabalho. Portanto, posta a questão desta maneira, a um mineiro também não é a mina que lhe salvará a vida. Bem pelo contrário.

Então, para si, escrever é um ofício que se confunde com a vida...

A literatura, como trabalho que é, enquanto se pode fazer, faz-se. Acabando-se a vida, acaba-se o trabalho. E, se esse trabalho tem a ver com literatura, é cortado nesse momento. No fundo, é como uma ave que é abatida em pleno voo. Vai voando e julga que vai chegar àquela árvore, onde quer pousar, mas, de repente, há um tiro de um caçador que a deita abaixo. A vida é isto.

Há uns meses, aquando da inauguração, no Palácio da Ajuda, da exposição "José Saramago - A consistência dos sonhos", avisou os interessados de que o novo livro, este que agora sai, não teria uma história de amor....

Pois não tem. Mas o facto de eu dizer isso foi resultante de se ter começado a chamar a este livro, que ainda não era conhecido, romance. Na altura, disse que prefiria chamar-lhe conto. É certo que é um conto extensíssimo, tem quase 260 páginas. Mas estas cosias também não se definem pelo tamanho. Há características, ingredientes, que se estão numa determinada obra, com conflitos e crises, habituamo-nos a chamar-lhes romances. No conto, pode aparecer qualquer coisa disso, mas sempre limitado pelo número de páginas. Por causa disso, preferi chamar- -lhe conto. Mas, agora, tenho de dizer que já não lhe chamo assim. Chamo-lhe livro, e pronto.

Neste livro, o narrador tem intervenções por vezes sarcásticas com o próprio ofício e fala em "puxar o lustro à prosa"....

Sempre tive esse problema com a história do narrador. Para mim, a voz narradora é muito simplesmente e muito mais primariamente o autor. Neste livro, o que aconteceu foi o aparecimento de uma outra figura, que já estava presente nos livros anteriores, mas que, desta vez, assume o seu papel inteiramente, a do autor- narrador. E creio que, com isto, acabei por resolver esta questão.

Como surgiu a ideia de "A viagem do elefante"?

Foi no decorrer de um encontro com amigos, em Salzburgo. Na altura, fui convidado para falar na universidade local e fiquei a saber da viagem de um elefante, exactamente em 1551, que foi levado de Lisboa para Viena. Os dados históricos sobre a existência deste elefante cabem numa página. Então, este livro é um livro de invenção contínua. Curiosamente, há um facto real que narro e que pode surpreender o leitor, levando-o a pensar que, enfim, é outra invenção minha. Refiro-me ao episódio ocorrido em Veneza, em que o elefente salva uma criança. Isso sim, é histórico. Aconteceu. Como vou inventando tudo, o leitor pode chegar ali e pensar: aqui está mais uma invenção do Zé Saramago!

Neste livro, através do cuidador do elefante, um indiano, são postas a nu muitas das hipocrisias da Igreja Católica...

De facto, não sou nada benevolente quanto a isso. Todos os argumentos que se dirijam a essa instituição chamada Igreja Católica Apostólica Romana, salvo raras excepções daqueles que respeitam a lógica e o senso comum, são mais do que justificados. Essa é uma associação em que, em certos momentos da sua história, chegou ao crime. A Inquisição foi uma associação criminosa.

Aliás, a sombra da Inquisição também paira em "A viagem do elefante".

Sim, porque é neste período que a Inquisição vai instalar- -se em Portugal. E o secretário do rei, Pêro de Alcáçova Carneiro, de cuja existência não sei nada, manifesta-se neste livro preocupado com as consequências da entrada da Inquisição no país. Sabemos o que aconteceu...

Os seus leitores habituais vão ficar surpreendidos com a capa do livro. É uma mudança gráfica radical.

É, de facto, bastante radical. Gosto muito da capa. E as edições futuras serão feitas dentro deste espírito, com este fundo amarelo e esta ilustração roxa que parece um pouco insólita. Mas, em futuras edições, haverá uma diferença. Neste caso, o livro tem esta capa. Futuramente, nas reedições que forem sendo feitas dos meus livros, vão conservar-se as capas com a imagem antiga e esta, nova, surgirá como sobrecapa. Digamos que é uma solução de compromisso.

Esta mudança de imagem está de algum modo relacionada com o facto de a Caminho, a sua editora, ter sido comprada pelo grupo Leya?

Claro que, se não tivesse acontecido a venda da Caminho à Leya, estaríamos ainda com as velhas capas. Mas é compreensível que, numa situação destas, haja ideias novas, que depois se discutem e se aceitam ou não. Pediram-me uma opinião. E, francamente, gostei. E, agora, esta capa vai ser a mesma das edições italianas e espanholas.

Esta entrevista acontece um dia depois de o Governo, através do Conselho de Ministros, ter anunciado a privatização de um banco, o BPN. Que comentário faz?

Estamos em puro delírio. Agora, somos nós todos que vamos pagar os erros de banqueiros corruptos e sem sentido ético. E tudo isto é apresentado como se fosse a coisa mais natural deste Mundo, quando não é. A grande questão aqui é que nós não temos alternativa política a isso. Numa situação como esta, seria natural uma oposição de Esquerda forte, clara, consistente, coerente. Mas o que há é um adormecimento a todos os níveis da sociedade. Este sistema adormeceu-nos. E agora ri-se simplesmente de nós.

Voltando ao livro: "somos cada vez mais os defeitos que temos e não as qualidades"? Continua com esta visão pessimista da Humanidade?

Como se pode ser optimista quando tudo isto é um estendal de sangue e lágrimas? Nem sequer vale a pena que nos ameacem com o inferno, porque inferno já o temos. O inferno é isto.



Fonte: Jornal de Notícias
05/11/2008