por Bruno Oliveira *
(*) Bruno Oliveira é jornalista de O Ribatejo
Quem lê os outros, lê-se a si próprio. O Homem sempre procurou reproduzir e produzir conhecimento sobre si, através das mais variadas formas. A literatura tem sido um espaço privilegiado para estabelecer este encontro do ser humano consigo próprio, reflectido nos outros "outros" da narrativa. A omnipresença do contador de estórias é um dos topos da utopia humana na busca da perfeição divina. O transcendente ultrapassa-nos e é por isso que lá queremos chegar. O desconhecido atemoriza e é por isso que procuramos a omnisciência. E tanto melhor se a encontrarmos em algo aparentemente inócuo como é um livro relatando uma estória ficcionada. Mas, e se o poder da palavra ultrapassar o poder paralizante do medo ou da ignorância? E se o abalo psicológico causado pela ficcionalização do real for mais destrutivo do que a simples tomada de conhecimento desse real. E se o inquietante domínio, por parte do narrador, das possibilidades de comunicação de uma realidade desconhecidamente conhecida, for algo absurdamente lancinante e mentalmente revolucionário?
É exactamente este poder comunicacional que me fascina no escritor José Saramago. Muito mais do que o seu talento estilístico, muito mais do que o seu elevado grau de sagacidade mental e destreza técnica, muito mais do que o simples facto de concordar ou não com ele, o que me atrai neste artista é a sua capacidade de ler o mundo, mas um mundo que existe para além das fronteiras do concreto das acções. O «mundo» (ou mundos) da obra de Saramago são símbolos de uma capacidade imaginativa ímpar. Contudo, são produto das contingências que a realidade palpável apresenta ao escritor. E por isso mesmo, não deixa de ser um reflexo da sua condição humana enquanto ser vivo. O próprio Saramago pensa assim: “Se pudesse referir uma frase que definisse o meu trabalho, seria: "Escrevo para compreender."” Veja-se o quanto é fascinante esta ideia de escrever para compreender, para prender a compreensão do leitor, para apreender a tensão do seu processo interpretativo, para lhe abrir uma janela possível para o real (seja ele qual for). E, além disso, veja-se o papel que é dado à imaginação. O próprio autor chega a afirmar: “Se, no final do século XIX, os grandes sábios, filósofos, cientistas, se reunissem para imaginar como seria o mundo cem anos depois, não acertariam em nada. A imaginação deverá servir para resolver as questões de hoje.” E acrescenta: “A escuridão está aí, a inteligência conseguiu implantar alguns pequenos faróis, luzes, para nos orientarmos. O facto de existir uma espécie humana devia dar-nos um sentido de humildade perante a majestade do universo, mas em vez disso, (…) temos sete mil milhões de seres humanos que não resolvem senão numa parte ínfima dos seus problemas.” É bom pensar nestas palavras de Saramago, nomeadamente, no facto de poder haver um maior comedimento das pessoas no que respeita à sua importância e papel no mundo. Lembremos o que a arrogância humana pode causar: pobreza, morte, fome, poluição, etc. Mas, já José Luís Borges afirmava: “O livro é uma extensão da memória e da imaginação”. Ou Julien Green que diz:”Um livro é uma janela pela qual nos evadimos”.
José Manuel Mendes classifica os livros de Saramago como “livros do nosso desassossego” e realmente podemos verificar isso a partir do momento em que lemos uma das muitas interrogações que nos são colocadas através das ficções saramaguianas. Antes de mais, porque o ficcionista prefere a interrogação e o desafio, o lado sonegado do real, um imaginário perturbador, renunciando às lógicas concertadoras, sedimentadas num jogo de previsão dos gostos correntes. E di-lo sem tibieza: “Os escritores não têm que andar cá para tranquilizar, suponho mesmo que é nosso dever intranquilizar toda a gente”. É como se chegássemos à obra de Saramago prontos para reconhecer o que vamos ler nos traços de realidade que conhecemos. Mas, em poucas páginas de leitura, percebemos que a capacidade narrativa e imaginativa do autor suplantam essa barreira das convenções. Quantas são as vezes que a estória nos assalta a mente com reflexões filosóficas, linguísticas, para-linguísticas, político-ideológicas, sexuais, raciais, etc. A utilização frequente de um meta-discurso sobre a narrativa é um dos traços mais marcantes de Saramago. A alusão a provérbios populares (quase sempre adaptados pelo autor) é outra das referências do estilo saramaguiano. E ainda, uma outra característica muito marcante é o recurso a reflexões interiores das personagens que estabelecem uma paragem no tempo da acção mas que, por vezes, apresentam um desenvolvimento na história. Isto é, imobiliza-se a acção das personagens mas os seus pensamentos dão-nos a conhecer partes da história que o autor nos quer contar.
Para além destas reflexões interiores, estão presentes, nos textos, muitas marcas de juízos morais do próprio escritor para com as situações por si criadas. Ele é o seu próprio crítico e é o crítico da sociedade que pensa e que vive de uma determinada forma. Estes juízos morais e estilísticos são intercalados pelo meio dos diálogos das personagens, por entre o desenrolar de uma acção ou de uma reflexão interior. Este processo torna as frases em longos períodos de ideias, longas estradas recheadas de atalhos que somos levados a percorrer. Não perdemos o fio condutor mas encontramos outros fios paralelos à estória principal. Aliás, a principal riqueza da escrita de Saramago, para além das histórias invulgares e tipicamente ensaísticas, é a multiplicidade de intertextualidades com outros textos, principalmente com o senso comum e com a linguagem popular, mas também com a linguagem bíblica e religiosa que perpassa em muitas das nossas marcas de oralidade.
Tendo falado do narrador, debruço-me agora sobre o papel do leitor. Na minha opinião, qualquer leitor deve ter a curiosidade aliciante da personagem Sr. José do livro Todos os Nomes. Este funcionário de uma conservatória do registo civil vivia um projecto baseado nos valores modernos da ordem, mas pisa o risco e a ameaça de labirinto passa a dominá-lo. Também o leitor interessado de uma obra «pisa o risco» da fronteira ténue entre realidade e ficção e acaba por transgredir os códigos e padrões de um pensamento extremamente condicionado pela materialidade das rotinas quotidianas. Ao ultrapassar esta barreira e, ao adquirir determinado conhecimento sobre o que fica «além-mar», o aqui e o aquém-imaginação são experiências concretas extremamente dúbias e sobre as quais ele vai reflectir com outros olhos. É como se ficasse munido daquelas capacidades que só os profetas e os videntes possuem. Mas, muito além destas capacidades, o que nos assalta é uma inquietude mental deveras acutilante e enigmática.
Como pensar o mundo, depois de ler um retrato da sociedade contemporânea (e até mesmo, da sociedade de todos os tempos) no livro Ensaio sobre a Cegueira que descreve um cenário alarmante para a dignidade e civilidade humanas? Atente-se na parte em que, neste livro, e tomando em conta todos os problemas inerentes a uma reclusão quase de campo de concentração agravada pela cegueira incapacitante, as pessoas do manicómio depressa começam a digladiar-se pelos bens essenciais, a lutar pelo poder, pela dominação cega de um grupo de cegos. O aspecto importante é que este «micro-clima» do manicómio acaba por reflectir muitas das atitudes e comportamentos sociais e individuais do ser humano. “O mundo está todo aqui dentro.” – diz a mulher do médico. Isto reflecte-se também na repartição da comida e em toda a organização social e hierarquização de funções que se estabelece na vivência no manicómio. É visível, nesta estória, a importância que o autor confere à mulher no decurso de todo o seu trabalho literário. Saramago chegou mesmo a afirmar numa entrevista: “O modelo masculino do mundo falhou e as mulheres ainda não foram postas à prova”. No Ensaio sobre a Cegueira, nesse mundo de trevas brancas, a mulher do médico – única personagem a não cegar – é voz da lucidez. Essa mulher transporta a esperança e a clarividência. Pode ser considerada, num sentido benjaminiano, um anjo que vê lucidamente, que faz cintilar as ruínas. A mulher do médico encarna muitas heroínas: a Blimunda do Memorial do Convento, como facilmente se depreende de frases como esta: “levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas”; a Maria Madalena do Evangelho a guiar Jesus pelo túnel criado por Deus e que era a sua vida.
Como pensar os conflitos entre modernidade e pós-modernidade depois de os encontrar, em todos os seus aspectos mais perversos, no livro A Caverna? Será que o mundo "cá de fora" (aquilo que se entende por realidade) é mesmo assim? Ou será pior? Provavelmente, será mais concreto. Mas será mais real, mais verdadeiro? “Quid es veritas?” perguntava Pilatos a Jesus Cristo antes da crucificação. O que é a verdade na obra literária, e o que é a ficção? Até que ponto a verdade da ficção não pode ser uma ficção da verdade? Ou quiçá o contrário seja verdadeiro, isto é, em que medida é que a verdade da realidade não é uma ficção da imaginação? Confusos?! Também eu. Mas este modesto jogo de palavras que aqui construí é um nada perante o enigma semiótico presente em muitas das obras de Saramago. O seu poder narrativo também passa pela sua enorme capacidade de jogar com o sentido mais literal das palavras e dos seus significados, e de nos pôr a pensar se o que dizemos é aquilo que queremos dizer, se o que queremos significar com uma palavra ou expressão é aquilo que essa palavra ou expressão significam. Pensemos numa expressão que usamos frequentemente: "Hás-de ver!" – dizemos isto como que a encorajar o outro interlocutor ou a desafiá-lo para algo que afirmamos ser capazes de fazer. Quantas vezes já dissemos: "Hás-de ver que sou capaz!". Imaginemos então esta e outras expressões usadas no livro Ensaio sobre a Cegueira e, justamente, ditas por cegos para cegos. É de um sarcasmo atroz!
Aliás, este livro marca de tal forma o leitor que difícil será para este livrar-se da visão e do cheiro de tanta miséria e de tanta porcaria que, no fundo, caracterizam este mundo. Mundo que, para não a ver e para não a cheirar, constrói tapumes de cartão e espalha perfumes à volta. Não seria aquela cegueira toda afinal um momentâneo vislumbre de visão? “Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.” – são estas a últimas linhas do livro. É realmente desconcertante a mensagem e a estória construídas por Saramago. Mas mais desconcertante é a sua extrema sabedoria de não resolver totalmente nenhum dos enredos e de deixar sempre algo em aberto. Assim o fez de forma muito visível no seu livro O Homem Duplicado. Assim também o fez com o Ensaio sobre Cegueira, livro que tem uma continuação visível no mais recente Ensaio sobre a Lucidez. Muito se disse sobre esta obra de Saramago, assim como se criticou a obra Caim. Sobre estes livros apenas digo aquilo que digo sobre todos os livros: são estórias! Mais ficcionadas, menos ficcionadas, mais acutilantes ou mais inofensivas, são estórias. Assim como o livro O Evangelho segundo Jesus Cristo, que provocou tanta polémica na altura do seu lançamento, e que ditou o afastamento do escritor de Portugal. Não digo que sejam estórias ingénuas, desinteressadas, sem ideologia por detrás. No entanto, são ficções, muitas vezes, bem próximas da realidade e, por isso mesmo, mais pertinentes do ponto de vista da sua publicação. É preciso abrir as mentes dos leitores com estórias fortes, duras se for preciso, mas ainda assim que sejam apelos para a clarividência e discernimento dos leitores e da sociedade em geral.
(*) Bruno Oliveira é jornalista de O Ribatejo