+A +/- -A
Palavras para uma homenagem nacional

por Carlos Reis



Num dos seus romances e num estilo que lhe é característico, escreveu José Saramago: "Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores..." E, logo depois, continua Saramago: "Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias..."

Não por acaso, adoptou-se como lema desta homenagem nacional – como seu mote, para falarmos a linguagem que às coisas literárias convém – a expressão que abre este passo d'A Jangada de Pedra. Não por acaso, sublinha-se nela, de entrada, o «dificílimo acto» de escrever, também a responsabilidade que ele envolve, responsabilidade que só na aparências das coisas entenderemos como expressão de sentido único, pois que, realmente, nela se ocultam e desdobram responsabilidades várias: responsabilidade estética, responsabilidade cultural, responsabilidade cívica, responsabilidade ética.

É também a consciência de uma responsabilidade múltipla que hoje aqui celebramos. Porque, com a literatura que escreveu e escreverá, José Saramago soube protagonizar a dimensão dessa responsabilidade, é ele merecedor de uma gratidão que estendemos também a toda a literatura: essa que o autor de Memorial do Convento escolheu como matéria e linguagem com que representa o mundo, os homens que o povoam, as suas angústias e as suas fraquezas; essa que, desde sempre – desde que a palavra se articulou como lugar estético de inscrição de sentidos a dizer –, foi manifestação de pulsões e de tensões, de fortunas e desfortunas, de destinos individuais e de destinos colectivos, de histórias ficcionais e dessa outra História que a todos compromete porque de todos resulta, como trajecto colectivo e fado comum.

Assim é. No princípio era certamente o verbo; mas logo depois, numa espécie de segundo princípio que o primeiro caucionou, esse verbo fez-se a matéria artística com que alguns disseram e dizem o mundo: um mundo tornado singular, que é o deles e já também o nosso. Nesse princípio também remoto está alguém que conta uma história plasmada pela e na palavra, alguém que nos seduz, chame-se-lhe aedo ou narrador, contista ou romancista; alguém que nos domina, pelo talento com que diz «era uma vez» ou «in illo tempore» ou «conta-se que...». Mudaram os tempos, não mudou, porém, esse acto mágico que, abrindo o sésamo da imaginação e do mito, da ânsia de saber e do desejo de conhecer, modeliza uma mensagem a que só podem ser indiferentes os que acreditam que a ficção é só ficção; esses e os que ignoram que na ficção pode expressar-se fingidamente – isto é, por sofisticada modelação artística – uma verdade de sinuosa circulação.

Também por isso, a literatura foi e será cena de projecção de outras tensões que não apenas – o que muito seria já – aquelas que a sua escrita encerra: tensões que explicam que, não raro, à literatura tenham sido cometidos propósitos outros que não aqueles que a sua mesma condição de fenómeno artístico legitima; tensões que, noutros e bem sombrios momentos, sobre ela fizeram recair a violência dos homens que se iludiram com a crença de que censuras e interdições alguma vez poderiam calar a voz dos escritores. Jamais o fizeram – e Saramago é disso a evidência bem viva, ou não fosse ele quem, referindo-se um dia ao poder das palavras e à violência do silêncio, disse: "Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão".

Ao participar na homenagem nacional que hoje prestamos a José Saramago, a Biblioteca Nacional, como grande instituição de cultura que se preza de ser, homenageia também aquele que um dia foi seu leitor. E que, sendo-o, deu uma lição de humildade e de trabalho cultural a todos os que vivem ainda a ilusão de que a criação literária é epifania vinda do nada, graças apenas ao toque fabuloso da Fortuna na fronte do escritor. Não abundam, infelizmente, tais momentos e por isso – sabe-o bem todo o escritor que o é de corpo inteiro – o labor e isso a que Camões chamava «honesto estudo» há-de completar um talento que, entretanto, aqui não desqualifico, antes igualmente celebro. É verdade que Alberto Caeiro desmereceu dos poetas que trabalham a palavra com paciência e com sacrifício: "Que triste não saber florir!", disse; "ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro / E ver se está bem, e tirar se não está ..." Mas é certo também que a própria poesia de Caeiro, oculta, sob a inocente perversidade de quem a proclamou, o muito trabalho que a simplicidade artística, afinal, requer.

Assim foi e assim é com o escritor que hoje homenageamos. Quem foi capaz de refigurar o tempo português em que milhares de homens e mulheres construíram um grande convento (homens e mulheres com profissões, lugares com nomes, costumes com cor local); quem soube descrever o cenário de uma Lisboa truculentamente medieval, nas vésperas de uma conquista reinventada; quem fez reviver o tempo e o espaço que foram os do filho do Homem; quem tudo isso e o mais que agora se não diz foi capaz de fazer chama-se José Saramago. Fê-lo também porque interpretou a condição do escritor sob o signo do trabalho metódico, árduo e silencioso, trabalho de estudioso no recolhimento da biblioteca, longe do olhar dos homens e da vaidade do mundo; uma biblioteca que não é apenas um depósito de livros mortos, mas um lugar onde se busca e faz cultura viva. Por isso, é com orgulho e é com honra que hoje aqui reconheço, no Prémio Nobel da Literatura, o leitor da Biblioteca Nacional que, há não muito tempo, Saramago também foi; por isso também, é este o momento azado para, pela primeira vez, atribuirmos a José Saramago uma distinção que acaba de ser criada: a de leitor emérito da Biblioteca Nacional, que José Saramago é a partir de hoje.

O trabalho literário de José Saramago não tem sido nem será uma actividade isolada daquilo e daqueles que o rodeiam. Se a expressão instituição literária não é excessivamente forte, então podemos dizer que Saramago é parte dela, naquilo que a instituição literária encerra de legitimador e de instância de consagração. O facto de a um escritor ser atribuído um prémio – qualquer prémio, mas em especial o Nobel – não pode ser dissociado dessa dimensão institucional que o autor de Ensaio sobre a cegueira inevitavelmente tem que enfrentar.

De sobra sei, porém – porque o conheço e porque nele ecoam exemplos semelhantes –, de sobra sei que José Saramago jamais se deixaria tolher pelos mecanismos da fama e da consagração institucional, tais como os estabeleceu uma concepção mercantil e empobrecida da literatura que hoje vai fazendo doutrina, para escritores e para leitores que praticam a facilidade como princípio. Não assim com Saramago: sem cultivar a dificuldade pela dificuldade, Saramago não é consabidamente um escritor fácil, porque os temas que representa são complexos, incómodos e não raro controversos; e assim, a linguagem que o celebrizou só por uma espécie de hipocrisia e comodismo estilístico poderia escapar à responsabilidade estética de dever ser – de ter que ser – a linguagem elaborada que lhe é característica. Quem quiser ler fácil e sem maiores incómodos terá que bater a outras portas – que aliás não faltam.

O que o Prémio Nobel da Literatura veio reconhecer em José Saramago foi também essa coragem de ter sabido ser, em muitos anos de vida literária, um escritor exigente consigo e com os seus leitores, com a sua literatura e mesmo com o seu país. Disse em muitos anos de vida literária, porque foi assim que as coisas se passaram. Enganam-se aqueles que pensam que o escritor José Saramago começou inopinadamente a ser escritor em 1980, quando publicou Levantado do Chão, o seu primeiro romance de grande sucesso público: entre outras e muitas qualidades, este é um escritor que assume a noção – e disso não se envergonha – de que há uma aprendizagem da escrita literária, uma longa aprendizagem que em Saramago passou pelo trabalho da poesia, do conto, do ensaio e da crónica de imprensa; um trabalho a que não é estranha a herança literária em que Saramago se insere e em que podemos surpreender, entre outras, três presenças de forte carga matricial: a do Padre António Vieira, que antes de mais ninguém cultivou a nossa língua literária como constelação verbal em que cada palavra, mesmo a mais insignificante, tem um lugar próprio; a de Almeida Garrett, inovador a quem devemos a criação da língua literária moderna, a par do irreprimível movimento de valorização da terra portuguesa como motivo e como tema; a de Eça de Queiroz, pela via de uma ironia crítica que a muitos desconcertou e desconcerta ainda. Assim é com Saramago, que destas referências fundadoras terá colhido ainda o exemplo de uma outra atitude constitucional: a que trata de ver de fora, para ver melhor. Assim se estigmatiza também o famoso trauma do nosso provincianismo, um trauma de que falou Fernando Pessoa, com alguma desmesura e quiçá com uma certa má consciência.

Inscrevo, pois, Saramago numa ilustre família literária, a que outros nomes poderia ainda juntar. Família bem portuguesa, apesar de algumas aparências enganadoras; família que cultivou, amou e difundiu, como Saramago, a língua portuguesa. Por isso se tem dito que o Prémio Nobel da Literatura, entre outras conveniências, traz consigo essa que é a de fazermos dele um argumento em prol da nossa língua e da causa da lusofonia. É verdade, mas convém não exagerar, para que à literatura se não exija o que ela não pode dar e para que não desfiguremos a sua especificidade de fenómeno estético, não de bandeira política. Se é certo que um grande escritor de ampla dimensão internacional muito pode fazer pela afirmação da língua portuguesa como grande idioma de cultura, também é certo que, a par disso, outros argumentos e protagonistas têm o dever de entrar na liça de uma disputa que nos arriscamos a perder, se confiarmos apenas no poder de difusão linguística da literatura – até porque ela não chega lá onde livros não existem e onde a iliteracia é ainda uma chaga por curar.

Fico-me, portanto e por agora, com o escritor José Saramago, Prémio Nobel da Literatura de 1998. Fico-me com o universo que criou e continua a criar: um mundo por vezes sombrio e amargo, céptico e desencantado, onde se cruzam questões axiais, como a necessidade de revermos a História e nela redescobrirmos novos e injustiçados heróis; ou a indagação da nossa condição portuguesa, no espaço ibérico e no espaço europeu; ou a revisão de mitos, crenças e valores fundamentais da cultura ocidental; ou a ponderação de egoísmos e crueldades que assolam um mundo de onde, por vezes, a esperança parece ter sido abolida. Tudo isso e também as figuras que povoam os cenários ficcionais de Saramago, sejam Blimunda ou Baltasar Sete-Sóis, Raimundo Silva ou Maria Sara, Joana Caída, Joaquim Sassa, Pedro Orce ou esse cinzento Senhor José que encontramos no último romance que o escritor até agora publicou.

Todos estão connosco, porque o mundo que os escritores inventam, não é, passe o paradoxo, propriamente inventado: é o nosso mundo, revelado pelo milagre da linguagem que só eles sabem articular. Também por devermos ao escritor a revelação de um mundo que, sendo nosso e talvez até íntimo, ainda não conhecíamos, esta homenagem era devida. Todos estamos nela: aceitemos, por isso, nela também e para que se atinja a suprema harmonia que a literatura busca, os humilhados e ofendidos a que Saramago deu voz e que sinto convergirem nesta celebração, como nesse «dia principal em que os encontrámos, no final do romance Levantado do Chão: «Põe João Mau-Tempo o seu braço de invisível fumo por cima do ombro de Faustina, que não ouve nada nem sente, mas começa a cantar, hesitante, uma moda de baile antigo [...]. E olhando nós de mais longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver Augusto Pintéu, o que morreu com as mulas na noite do temporal, e atrás dele, quase a agarrá-lo, sua mulher Cipriana, e também o guarda José Calmedo [...] e outros de quem não sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas. Vão todos, os vivos e os mortos. E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.


Lisboa, 14 de Outubro de 1998


Discurso proferido na homenagem nacional a José Saramago. Publicado na 3ª edição da Revista Camões, outubro-dezembro, 1998.