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Cadernos de Lanzarote - Diário II
Diários, 1995



 
Capa da edição portuguesa de Cadernos de Lanzarote - Diário 2




























"Como serão as coisas quando não estamos a olhar para elas? Esta pergunta, que ainda hoje não me parece absurda, fi-la muitas vezes em criança, mas só a mim próprio me atrevia a fazê-la, não a pais e professores, porque adivinhava que eles sorririam da minha ingenuidade (ou da minha estupidez, segundo minha opinião mais radical) e me dariam a única resposta que não poderia convencer-me: 'As coisas, quando não olhamos para elas, são iguais ao que parecem quando estamos a olhar'."

Começa assim o artigo que José Saramago publicou num jornal espanhol (El País)  e que transcreve em suas anotações do dia 30 de março de 1996. O texto prossegue com a narração de quatro lições que "o destino (nome literário da vida)" obrigou o autor a aprender. Todas elas tratam das relações entre o ponto de vista e o poder de falsear que têm as palavras. Justamente por isso, tornaram-se para Saramago "quatro pontos cardeais": um "bússola completa".

As lições foram aprendidas de cor e salteado. Ler os Cadernos de Lanzarote II  é acompanhar um escritor em perpétuo movimento, deslocando-se quando for preciso para ver melhor o que está distante dele, o que está longe, o que ficou para trás e o que vem pela frente.

Saramago fala sobre tudo: a família, os amigos, as coisas cotidianas, as coisas extraordinárias, as viagens constantes, as tarefas que decorrem do seu modo próprio de praticar a literatura, o Brasil, os muitos brasileiros que conhece... O primeiro personagem de um diário é sempre o próprio autor, o que lhe dá o direito de registrar o que bem entender. É o que Saramago faz, com a liberdade de quem é dono de si e de quem conta com o senso ético para estar com as pessoas. Ao colher um tema em seus diários, qualquer que seja ele, está trabalhando a favor de múltiplos sentidos que as coisas têm ou deveriam ter, se conseguíssemos dirigir a elas um olhar mais justo.


[texto da orelha do segundo volume publicado pela Companhia das Letras em 1999]

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Saramago, a vaidade justificável

por Miguel Sanches Neto


Um diário é um cômodo íntimo de uma casa. Nele, encontramos o autor em suas roupas domésticas, vivendo como o comum dos mortais. O que impera é o acontecimento miúdo, as pequenas vaidades, as alegrias cotidianas, os prazeres de ver a vida que passa, as indignações, etc. Quando o diário é escrito por uma grande personalidade, a estes móveis mais inexpressivos são acrescentados outros: a sua participação em grandes acontecimentos, sua concepção de mundo e os eventos dos bastidores da vida pública por ele vivida. É, invariavelmente, a parte interna da casa, as intimidades do edifício, com suas manchas de bolor e com sua decoração, que encontramos na leitura dos textos nascidos sob este rótulo.

O leitor de diários está sempre atrás das grandezas e das fraquezas de quem escreve e sempre será possível encontrá-las nesta categoria de texto em que sobressai um eu. Acusar um autor de ser ególatra é algo que não diz absolutamente nada, servindo apenas para depor contra a inteligência de quem faz tal afirmação. Todo diário é, em sua essência, um culto do eu e, portanto, todo autor de diários é um cultor de si mesmo. O que varia é o grau de presença do eu, uns são mais e outros menos ególatras, e natureza desta presença, algumas são justificáveis pelas questões que suscitam.

Quem procura tais textos deve portanto saber que o que ele encontrará é um discurso do eu, que pode vir mais velado, como quando um viajante mostra uma paisagem ou fala de questões sociais. Mas o eu, neste caso, não está ausente, apenas oculto. São suas as opiniões e seu o olhar. Até esconder o eu não é mais do que chamar a atenção para ele.

No diário tudo é vaidade. Quem escreve é vaidoso por levar a sua vida a sério, por dar-lhe importância ao ponto de escancará-la ao público. E quem o lê também é vaidoso, porque no fundo quer se ver no diário. Mesmo que não seja conhecido do autor, ele quer se reconhecer na vida privada deste. Depois que começou a transcrever cartas em seus diários, cujo segundo volume da edição brasileira acaba de ser lançado (Cadernos de Lanzarote II, Cia. das Letras, 1999), José Saramago passou a receber um número muito maior de missivas, como fica sugerido pela recorrência delas no volume em questão. Também deve ter aumentado a freqüência de visitas à sua casa e de convites para participar de eventos. Pois são estas as matérias do diário, espaço da vaidade por excelência. O próprio artigo que escrevo não deixa de ser movido pela vaidade de freqüentar a sua casa, de ocupar-lhe um mínimo espaço.

Isso posto, acabemos com as acusações ao autor. Saramago é tão vaidoso quanto quem o lê. Ponto final. Abramos outro parágrafo.

Por baixo desta matéria mais mundana e perecível pode ou não haver uma base sólida. É isso que deve definir a relevância de um diário. Assim, a imprescindibilidade dos Cadernos de Lanzarote II se localiza em duas questões axiais, pelo menos para este crítico. A primeira é a sua proposta de um retorno ao autor. A segunda é a história (que geralmente fica no mais completo segredo) do nascimento da ficção, da sua fase pré-natal.

Durante as longas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a literatura sofreu uma aceleração do movimento de tecnicização que tem acompanhado a modernidade. Nunca, como nesta segunda metade do século, ser moderno significou de forma tão primária investir, em todos os sentidos, em aparatos tecnicamente sofisticados. A estética, na arte, acabou ocupando o mesmo espaço que os objetos eletrônicos têm em nossa vida. O homem viu-se reduzido a um ser perplexo em meio a coisas que roubaram o seu lugar, condenando-o ao exílio. Que isso tenha acontecido no mundo material já é algo assustador, mas que a mesma coisa tenha se manifestado no mundo da cultura é que me desespera. Tanto na crítica (entregue ao estudo de questiúnculas técnicas), quanto na filosofia (perdida em conceitos vagos) e nas artes (que enaltecem o domínio dos instrumentos), o homem passou a ser uma figura dispensável.

No território específico de Saramago - a ficção -, o centro das atenções foi transferido para o narrador, ou seja, para um lugar técnico da narrativa. A obra, dentro desta visão distorcida, ganha relevância quando há a construção aprimorada de um narrador. O livro, portanto, passa a valer pelos recursos que convoca e não pelas verdades humanas condensadas nas trajetórias de seus personagens. Quando a figura do narrador se sobrepõe, o autor perde espaço - o que é o mesmo que dizer: o homem deixa de ser relevante. "O problema está, mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de comprometer-se com o cidadão, e que muitas das teorizações em que se foi deixando envolver acabaram por constituir-se como escapatórias intelectuais, modos de disfarçar, aos seus próprios olhos, a má consciência e o mal-estar deste grupo de pessoas - os escritores – que, depois de terem se considerado a si mesmas como farol e guia do mundo, acrescentaram agora à escuridão intrínseca de todo o ato criador as trevas da renúncia e da abdicação cívicas"(p.118).

Vendo neste culto do narrador uma escapatória intelectual, Saramago propõe que a literatura dê maior visibilidade às pessoas. Só isto já seria mais do que suficiente para justificar os seus diários. O diário revela o homem Saramago, não como o reverso do escritor, mas como o homem/escritor, este ser indissociável. Ele não vê o escritor como um personagem, como uma criação intelectual, e sim como um ser vivo que adquire estatuto literário. Assim, o literário é um estado decorrente e revelador do real e não um mascaramento deste. Poderíamos até arriscar a dizer que não há diferença significativa entre os Cadernos de Lanzarote e os demais títulos do autor. Todos estão a serviço do homem. Este movimento de retorno ao autor é o mesmo movimento que buscou dar espessor humano tanto para a história (Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa) como para o personagem de ficção criado por Fernando Pessoa (O ano da morte de Ricardo Reis). Neste livro, Ricardo Reis sai do mundo da literatura (onde se caracteriza por um programático abstencionismo) e penetra no mundo dos homens, para morrer como tal. Ele, ser sem corpo, se solidariza com a sofredora espécie humana. Alguém devia estudar as relações entre este romance e o filme Asas do desejo, de Wim Wenders.

Seus diários revelam ainda a precedência do humano no processo de gestação de seu mais recente romance: Todos os nomes, uma parábola sobre a imortalidade conquistada historicamente através da capacidade que o homem tem (e que muitas vezes acaba obliterada) de manter vivas, através da memória, pessoas que já se foram. Toda a busca do personagem de Todos os nomes, o escriturário José, um ser de essência autobiográfica, surgiu de um fato vivido por Saramago. Ele passou a desentranhar dos arquivos informações sobre um irmão morto no início da infância. O interesse pelo irmão deu origem a uma parábola (de caráter histórico e não religioso - que fique bem claro) em que ele propõe o interesse irrestrito por todos os seres humanos. Está aí não só a gênese da literatura de Saramago como também a razão de seu sucesso. Num período em que a maioria escreve a partir de uma concepção literária e artificiosa, ele se vale de suas vivências mais profundas, criando uma obra que encanta pela autenticidade.

É preciso ler os Cadernos de Lanzarote II perseguindo estas discussões e não atrás de exemplos de vaidade. Comecei este artigo dizendo que um diário é um cômodo íntimo de uma casa. A vasta produtividade do autor faz com que ele acolha muita coisa, transformando os cadernos numa espécie de quarto de despejo. No futuro, quando boa parte dos temas envelhecer, será preciso organizar este quarto, deixando apenas os móveis indispensáveis.

[Texto publicado no jornal Gazeta do Povo, edição de 05 de junho de 1999].