+A +/- -A
Caim
Romance, 2009



Edição brasileira de Caim. Capa de Hélio Almeida
sobre 86, (1962) colagem de papel sobre madeira,
de Arthur Luiz Piza, 70x65cm.
Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Reprodução de Isabella Matheus























Neste romance José Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação.

Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajeto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O Evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

[texto da orelha da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras, 2009]


*


O grito de Caim por José Saramago


por Pedro Fernandes de Oliveira Neto


É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue

(José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo, 2006, p.327)


Já era de se esperar. E não há novidade alguma no fato. O novo romance de José Saramago, Caim, lançado há poucos dias, recebeu da Igreja o já esperado visto de condenação devido seu teor. Segundo o episcopado lusitano, a nova obra do escritor português não passa de uma operação publicitária e reduz o romancista à categoria de sujeito amante da descordialidade e da ofensa.

Depois de insistir na concepção carnal de Jesus, "nascido como todos os filhos dos homens, sujo do mesmo sangue de sua mãe, viscoso de suas mucosidades" (OESJC, 2006, p.65), de uma Maria não virgem, do relacionamento amoroso entre Jesus e Madalena e do que possivelmente esteve envolvido no desfecho da vida de Cristo, Saramago avança sua veia crítica sobre o discurso religioso cristão quando nesse seu novo romance intima o leitor a se pôr novamente de cara com a face crua de um Deus que já no seu evangelho dava ares de seu egocentrismo, maquiavelice e crueldade.

Caim reconta a modo de Saramago, numa leitura leve e densa montada no seu já conhecido fluxo de narrar e nos jogos especulares de uma escrita que mira a si e os movimentos externos de alienação obliterados pelo balé das ideologias correntes, entrecortados tudo isso pelo tom de uma realidade às avessas, a já conhecida história do Gênesis, em que a oferenda de um dos filhos de Adão, no caso Caim, não teria sido do agrado de Deus, e, por isso, fora punido.

Com um título seco, Caim há de possuir uma carga forte de sentido quando faz por a personagem bíblica à horda dos oficiais mártires e recupera seu lance na materialidade mítico-histórica por outras vias. Esse romance vem retomar feixes de compreensão que são próprios do escritor português: os de que desde os primórdios já esse Deus a que adotamos como ser supremo nutre sua sede de sangue e o que o amor dedicado às suas crias à imagem e semelhança sua é algo questionável. Isso estaria implícito em atitudes como a de não aceitar como oferenda as frutas de Caim em detrimento do cordeiro oferecido por Abel. Em Caim quem recebe boa parcela da culpa pelo trágico desfecho - já sabemos que um irmão por inveja mata o outro - é o mesmo Deus sanguinário d'O evangelho.

Caim é para ser lido como se escrito antes d'O evangelho. Tem aqui a gênese do mal que vem entranhado nos modos ler Deus. No romance de 1991, recordo-me da cena em que se dá um dos primeiros encontros de Jesus com Deus: Ele o obriga o sacrifício de um cordeiro que Jesus a todo custo tentou esquivar do trágico fim; vendo a displicência do filho para com a ordem, Ele próprio fulmina o quadrúpede sem nem ao menos reparar que Jesus cortara-lhe pedaço da orelha para parecer cria sem serventia. Além dessa cena, é bom lembrar de outra: a em que Deus rejeita o arrependimento do diabo pelo interesse no sangue de Jesus: "Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora" (OESJC, 2006, p.328). São ambas as cenas como que fios que se amarram a esse novo romance, uma vez que Caim recupera os debates para o entendimento para o que venha ser a culpa e os sacrifícios feitos para o perdão. Ao mesmo tempo vem instaurar uma questão nova no debate: a do redimensionamento do conceito sobre a inveja.

No fundo o que pretende Saramago é injetar nos eixos das ideologias pequenos cartuchos a fim de proporcionar uma reflexão, uma nova maneira de ver e de mostrar que tudo o que nos cerca, inclusive nós próprios, é materialidade construída à base de nossas próprias escolhas.

Mas, matérias de ficção à parte, voltemos a querela da Igreja. Se estamos diante de artefatos ficcionais, o que a Igreja se finge de doida e não entende, se entende não admite, é o medo; esse não é nenhuma ingenuidade. É o arrepio que lhe corre pela dorsal de uma implosão de suas bases ideológicas, isto é, o desmantelamento de suas historietas de carochinha pelas vias "indevidas" dos fatos. O arrepio que lhe corre pela espinha da Igreja é o de um vento que desbarate toda a complexa rede de um poder que nada tem adiantado senão subverter os verdadeiros preceitos cristãos e estilhaçar as já frágeis bases da convivência humana.

A história oficial não nos deixa mentir. Quantos foram os mortos que em nome das causas da Igreja a terra embebeu-se de seu sangue e adubou-se com seus ossos e carnes? Quantos regimes de silenciamento e opressão tiveram as bênçãos da Igreja? Incontáveis são os números para as duas primeiras respostas. Todas, me parece ser a resposta mais concreta a última pergunta. Que o diga o extenso rosário de horrores rezado por Deus a Jesus por quase seis páginas corridas d'O evangelho, noutra cena também singular, a da barca, onde reunidos estão os dois mais o diabo a decidirem o destino de Jesus.

Caim vem pelas mãos de um escritor perspicaz, que enxerga por entre as frestas do nos posto como dito e aceito como realidade, propor um reengendramento dos discursos e da própria realidade. Senão isso, pelo menos uma reflexão criteriosa acerca disso tudo. Quanto ao entendimento da Igreja de que Saramago conhece superficialmente a Bíblia, me parece ser o contrário, ela é que conhece superficialmente a obra de Saramago.


[Texto publicado inicialmente em Correio da Tarde, na sessão Artigos, em 23 de outubro de 2009; depois publicado sob o título O grito de Caim e o silêncio da igreja no Caderno Domingo, do Jornal de Fato, em 01 de novembro de 2009; depois publicado sob o referido o título no Caderno Universo do Jornal O Mossoroense, em 08 de novembro de 2009].