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Carta de José Saramago para José Rodrigues Miguéis

"Parede, 20 de Março de 1966

Querido Miguéis,

Tanta amizade, tanta compreensão, tanta bondade – como lhe hei-de agradecer tudo isso? Um homem que tem mil razões para estar magoado, e escreve assim! Valente amigo!…

Um dia lhe contarei talvez o que têm sido, para mim, estes últimos meses. O menor dos meus males, afinal, ainda é a editora. O maior será provavelmente a imaginação… Mas que posso eu fazer contra esta doida? Discipliná-la? Quem dera. Mas ela pode mais do que eu. Um nada me deita a terra, um nada me levanta, e levo a vida neste cai-não-cai, à espera não sei de quê, de um sentido, de um norte – e nada, a não ser confusão, tenho diante de mim. E o tempo passa, foge, e tudo é miserável, mesquinho e anti-humano. Sou sibilino, bem vejo, mas um dia serei mais claro, se tiver paciência para me ouvir. A não ser que a consciência da insignificância essencial de tudo isto (dos meus problemas) acabe por se impor e tornar mínimo o que hoje assume proporções de catástrofe…

(…) Gostei (o verbo é pobre) de saber que vem. Mas antes não viesse, se pensar nas razões que o fazem vir. Deixe lá os nossos Intelectuais: tirante morder, o mais que fazem, o futuro julgará, e esta porca sociedade de elogio mútuo ou este permanente ajuste de contas de gangs rivais, não merecem mais que desprezo. Neste triste país, o sage é o homem calado que não quer conhecer ninguém nem quer que o conheçam. Há dias fui ao jantar de entrega do Prémio Camilo à Isabel da Nóbrega: é de morrer. Tanta impostura, tanta falsidade, tanto esforço para parecer mais inteligente que o vizinho, e sobretudo mais célebre. E tudo isto sob a capa de modéstia jesuítica, uma capa cheia de buracos de orgulho e de inveja. E esta gente é a nata, e esta gente conduz, orienta, dá entrevistas, pontifica, tem opiniões acerca de tudo e de coisa nenhuma. E todos, seja qual for a cor da epiderme, têm um lema: «Hors l’église (notre église) pas de salut!» E com medo de não nos salvarmos, lá vamos para a sombra do campanário que mais sólido parece, mas sempre com o olho no campanário do vizinho, não vá acontecer que a salvação não esteja afinal onde a supúnhamos. Há excepções, claro, há gente digna, sem dúvida, mas a balbúrdia não deixa que as suas vozes se oiçam, e quando, através da confusão, do burburinho, se ouve uma voz honesta, responsável, logo a irmandade se faz, logo os campanários afinam os rebates – e enquanto o intruso não se cala, justos céus, é ver quem mais bate.

Mas venha, já que tem de vir. Tem aqui um amigo que o receberá com os braços e o coração aberto, um amigo que lhe fará companhia mas que não imporá a sua presença. Conversaremos, falar-me-á de si, eu falar-lhe-ei de mim, das suas e das minhas coisas. A mim sei eu que me fará bem a sua vinda.

(…) Um grande e apertado abraço do seu

José Saramago"


[PEREIRA, José Albino (Org.). José Rodrigues Miguéis/José Saramago - Correspondência (1959-1971) Lisboa: Caminho, 2010]


Publicado inicialmente em Bibliotecário de Babel