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José Saramago e José Mindlin. Foto: Renato Parada. Fonte: Flickr de Renato Parada

Carta de José Saramago para José Mindlin


"Lisboa, 19 de junho de 1991.

Caríssimo José Mindlin,

Desta vez comporto-me como um senhor. Veio aí Suzana com a sua carta e o livro do Visconde de Beaurepaire-Rohan (que inveja tenho desses apelidos sonoros, eu que levo nome de erva que, segundo formais dicionaristas, nasce nos entulhos), e já respondo para agradecer e dar notícias. Agradecer muito o livro, que não me limitei a folhear, pois dei-me ao prazer de consultar com a maior seriedade deste mundo. Contudo, o que mais me comoveu foi a declaração prefacial do nosso visconde, 'quando falava do receio de perder o meu trabalho se não se apressasse em publical-o [sic] no pé em que se achava'. E acrescenta melancólico e sábio: 'Na minha avançada idade, não é lícito confiar muito na vida'. Tem razão Beaurepaire, tem razão Rohan, e por isso fez o que todos fazemos: publicar antes que se faça tarde. Se não fosse esta urgência, quantos livros teriam ficado por escrever, quantas insignificâncias teriam ficado no cérebro dos seus autores, quantas obras-primas teríamos perdido. Escrever é isso mesmo, uma corrida contra  o tempo e a morte, a ver quem primeiro chega.

Provavelmente, vêem-me estas filosofias do Evangelho que estou a escrever. Aqui para nós (digo-o pela primeira vez para fora da minha casa) é um livro que me mete medo. Estou remexendo coisas muito fundas nisto de ser, como somos todos, fruto duma civilização que é o que cristianismo quis que fosse. Não seríamos muito diferentes se tivéssemos continuado a acreditar em Júpiter, mas estou convencido de que teríamos sofrido menos. Em Novembro, se terminar o livro a tempo, se verá melhor o que aqui apenas lhe insunuo.

Da conselheira cultural não tive mais manifestações. Devo conhecê-la na próxima semana, pois estou convidado para um "encontro de amigos" com o embaixador, no Solar do Vinho do Porto, e é natural que ela esteja lá. Verei, com estes olhos vista, a autora de uma das delirantes cartas que recebi em toda minha vida.

Iremos ao Brasil na primeira boa oportunidade que surja, mas vocês, está fora das vossas previsões próximas virem a Portugal?

Um abraço afectuoso de

José Saramago"


[Fonte: Site da Fundação José Saramago. 28 de fevereiro de 2010]