Claraboia
Romance, 2011
Romance, 2011
Edição brasileira de Claraboia Capa de Hélio de Almeida sobre La balade du petit carré V (1973), gravura (goiva) em cores, de Arthur Luiz Piza, 37,9 x 28,3cm. Coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo. |
No início da
década de 1950, José Saramago já não era um nome totalmente desconhecido na
cena literária portuguesa. Aos trinta anos, o futuro vencedor do prêmio Nobel
publicara um romance - Terra do pecado (1947) -, e alguns contos
haviam saído em jornais e revistas de Lisboa, às vezes assinados com o
pseudônimo "Honorato". Saramago, ex-serralheiro mecânico e então um
modesto funcionário da previdência social, também possuía diversos poemas e
peças de teatro entre seus inéditos. Até 1953, o escritor iniciaria a redação
de mais quatro romances, que ficaram inacabados. Em 5 de janeiro daquele ano
"Honorato" finalizava o datiloscrito de um livro de mais de trezentas
páginas. O novo romance, em seguida encaminhado para publicação a uma editora
lisboeta por intermédio de um amigo jornalista, acabaria esquecido no
fundo de uma gaveta. O original nunca foi devolvido ao seu autor, que também
não recebera resposta alguma. Na década de 1980, o já consagrado José Saramago
era contatado pela mesma editora para publicar Claraboia. A mágoa pela
falta de resposta na juventude levou-o a declarar que não desejaria ver o
romance editado em vida, deixando para seus herdeiros a decisão sobre o que
fazer com o livro.
Após recente
desaparecimento do autor, as inquestionáveis qualidades do romance, construído
com diálogos precisos e um perfeito domínio do espaço narrativo, justificam
plenamente a opção de trazê-lo a público. O leitor habituado ao exuberante
estilo tardio de Saramago tem a oportunidade de reconhecer nesta obra de
juventude as origens dos números procedimentos ficcionais consolidados em
livros como Levantado do chão e Memorial do convento.
[Texto
extraído da orelha da edição brasileira publicada pela Companhia das Letras em
2011]
*
Maturidade
em plena juventude
por Inês
Pedrosa
Um dos mitos
associados a José Saramago é o da sua entrada tardia na literatura. Ideia sem
dúvida consoladora para os eternos aspirantes a escritores, mas sem
correspondência com a realidade. Saramago publicou o seu primeiro romance, Terra
do Pecado, aos 25 anos - e só não publicou o segundo aos 30 porque o editor nem
sequer se deu ao trabalho de lhe responder, ou devolver o original. Quarenta
anos mais tarde essa editora contactou-o, explicando que, numa mudança de
instalações, o manuscrito havia sido encontrado, e que queria publicá-lo.
Saramago recusou a oferta, dizendo que já não era o momento, mas deixou escrito
que os seus herdeiros poderiam fazer o que entendessem quanto a essa obra.
Depois da rejeição silenciosa desse seu segundo romance, Saramago deixou de
publicar ficção – só em 1977 reapareceria, com Manual de Pintura e
Caligrafia, cujo editor recusaria o seu romance seguinte, Levantado do
Chão (1980) – precisamente o primeiro a alcançar visibilidade. Dois anos
depois, com Memorial do Convento, acedeu à glória – e a inúmeros prémios.
E o resto é História.
O percurso
de José Saramago é uma parábola que nos deve fazer reflectir sobre os
atordoamentos e preconceitos (ideológicos, artísticos ou pura e simplesmente
resultantes da ignorância e da pressa, cada vez maior, com que ela se move) que
atrasam o reconhecimento e o incentivo do talento. Vejamos o que disse do livro
o seu autor: "Claraboia é a história de um prédio com seis inquilinos
sucessivamente envolvidos num enredo. Acho que o livro não está mal construído.
Enfim, é um livro também ingénuo mas que, tanto quanto me recordo, tem coisas
que já têm que ver com o meu modo de ser". Talvez exista alguma
ingenuidade emoldurando este livro carregado de sonhos e de sonho; eu prefiro
chamar-lhe luminosidade ou transparência, e agradeço-a. O dispositivo narrativo
é - como sempre, em Saramago - simples, poderoso e original: dar a ver a
encruzilhada de vidas e almas num prédio, isto é, pintar a pincel o microcosmo
que espelha a respiração de um tempo. O processo lembrou-me o belo filme Edifício
Master (2002), de Eduardo Coutinho. Demonstrando já o dom da arquitectura
romanesca que viria a torná-lo inconfundível e único, Saramago cruza e
articula, em capítulos alternados, as vidas das diferentes personagens. Que
todas essas figuras tenham uma presença forte e dinâmica, é outra das
qualidades fundamentais do livro - uma qualidade que impressiona
particularmente no que se refere à consistência das figuras mais velhas, dado
que o escritor era então muito jovem.
Em Abel, o
homem de 27 anos que recusa compromissos que o tornem "casado, fútil e
tributável", à maneira do Álvaro de Campos de Fernando Pessoa (o seu muso
inspirador), adivinham-se as angústias e interrogações do próprio autor.
"Tenho a sensação de que a vida está por detrás de uma cortina, a rir às
gargalhadas do nosso esforço para conhecê-la. Eu quero conhecê-la", diz
Abel. Os diálogos entre Abel e o seu senhorio, o velho e sábio sapateiro
Silvestre, constituem o nó central de uma história que se detém também na
opressão dos homens sobre as mulheres - um tema recorrente em Saramago -
desenhando personagens femininas inesquecíveis. Entre elas, curiosamente, há
uma espanhola, Carmen, que se confronta com a versão inversa do ressentido
ditado português ("De Espanha, nem bom vento nem bom casamento"),
dado que trocou um potencial bom casamento em Espanha por um casamento
desgraçado com um português. E há ainda Lídia, a mulher ostracizada por ser a
amante de um homem de negócios – mas à qual um casal respeitável não hesita em
pedir que interceda junto do amante para conseguir um emprego melhor para a
filha. E há uma família de mulheres sozinhas (mãe, filhas e tia) costurando
estrenuamente a sua sobrevivência ao som da música clássica da telefonia.
As melhores
páginas deste romance envolvente são, porém, as que descrevem guerras eróticas:
o modo como o corpo de Isaura desperta através da leitura de A Religiosa de
Diderot e o duelo entre a fria Justina e o seu infiel marido Camilo. O encontro
sexual descrito no capítulo 29 é fulgurante - pela concisão e rigor da escrita
e pela clarividência na análise psicológica das personagens. O desejo, nos os
seus múltiplos rostos e assombrações, atravessa todo o livro: a reflexão sobre
a mulher enquanto ser desejante surge ainda hoje como arrojada. Só isso
bastaria para que a publicação deste livro fosse proibida, nesses idos de 50 do
século passado. A censura portuguesa era especialmente castradora no que se
referia ao sexo e à imagem da mulher.
Em Claraboia,
a política aparece apenas como temperatura, uma espécie de névoa sufocante que
rodeia as personagens, a contas com dificuldades económicas alienantes. As
referências repetidas à "crise internacional" aproximam este romance
dos nossos dias, de um modo estranhamente profético. Um romance que nos revela
o Saramago inicial - já dono de uma voz e de um pensamento próprios e livres,
que se exerciam à revelia das cartilhas do neorrealismo, voando no
futuro.
[Texto
publicado no jornal O estado de São Paulo, 15 de outubro de 2011]