O silêncio da água
Conto, 2011
Conto, 2011
Edição brasileira de O silêncio da água. Capa de Manuel Estrada. |
Como aquele A maior
flor do mundo, que foi, inicialmente uma crônica e depois virou um conto
infantil, organiza-se, agora O silêncio
da água, um conto infantil oriundo de um fragmento do romance As pequenas memórias. Antecipo,
entretanto, que essa caracterização de “infantil” ela é um tanto quanto
discutível por natureza, mas mais ainda em José Saramago, que considera algumas
separações um tanto quanto caducas e pensa nas crianças como sujeitos com
capacidades tanto quanto de adultas para lerem sobre determinados assuntos e
determinadas histórias em determinados formatos. E mais: que os adultos padecem
de uma necessidade de ler tais histórias, para, lendo-as, possam se reencontrar
com a criança que um dia foram e, nesse movimento, se redescobrirem, inclusive,
enquanto adultos.
E O silêncio da água
está aí como prova disso. Nasce de um romance em que o exercício da escrita –
nesse caso, memorialístico – é o de uma volta à infância para reencontrar a
pessoa que o escritor tem se tornado. A resposta final é que os instantes da
infância não serviram apenas para uma modelagem daquilo que o adulto tornou-se,
mas em muitas vezes, é ainda o próprio adulto.
O instante captado d’As
pequenas memórias é o de um episódio que se dá à beira do rio Almonda – rio
que atravessa o povoado de Azinhaga, lugar onde o menino e o adolescente José
passou boa parte de sua vida, pelo menos, o período de férias, que era o
período em que deixava Lisboa e ia ter com os avós. Um dos passatempos infantis
do José – que existiram os passatempos adultos que eram os de limpar o curral
dos porcos, servir-lhes comida, carregar água; tarefas de ajudar os avós no
cuidado da terra e na pequena criação de suínos – era o da pescaria. E é uma
das pescarias que o livro narra o que se pôs aqui em O silêncio da água. Em cena está um narrador infantil contando o
fato e mesmo no instante em que a história poderia ganhar contornos do fabuloso
ou ares daquelas histórias de pescador dos adultos, o de dar com um peixe de
força maior que a do pescador, por exemplo, e depois de tudo vencê-lo, não, o
que se lê é uma certa vitória do peixe sobre o menino: é que, ao beliscar a
isca, a linha se parte e o pescado foge. O menino ainda volta em casa, refaz o
instrumento de pesca, na vã esperança de tornar a pegar o peixe o instante que
se depara é o do silêncio da água.
Nota-se aí que o resultado da transmutação de gênero –
romance-conto – é uma rica fábula, que difere, entretanto, das fábulas comuns.
Tudo porque o seu sentido pedagógico não é revelado – como se dá também n’A maior flor do mundo – mas põe a criança às voltas com a
imaginação a fim que possa reter esse instante de iluminação filosófica
peculiar na fábula comum. A rasura do texto é que seu enredo não oferece
nenhuma complexidade, nenhum grande conflito à busca de solução, nenhuma briga
entre bem e mal, mas um simples divertimento de uma criança que se põe a uma
tarefa já nem um pouco corriqueira às crianças de hoje ou às de seu tempo,
nascidas no centro urbano e distantes, portanto, desse universo rural, que é
por natureza, fabular, tanto quanto os paraísos mágicos das histórias infantis.
Reside aí, outro elemento peculiar nesse conto, o de apresentar a importância
que o contato com esse universo outro – totalmente diverso do ambiente urbano –
foi importante na formação do José escritor; principalmente, quando enxergamos
aí, o instante de contemplação da personagem no desfecho do conto: “Aquele
barbo tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de
certeza não morreria de velho, alguém o pescou num outro dia qualquer. De uma
maneira ou outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a marca,
era meu.”
O instante de volta à casa dos avós para pegar novos
apetrechos de pesca e o instante do encontro com o silêncio da água constitui
outro instante que é o de iluminação ou, para ser mais preciso ainda, de
esperança num futuro. A constatação final de que o peixe era, sim, seu, porque
tinha sua marca, é a constatação de que toda espera não é vã: o tempo tem-lhe
resposta para tudo. Aqui reside um dos viés possíveis para que possamos ler uma
“moral da história” para esse conto.
Por fim, devo comentar da riqueza plástica que é as
ilustrações compostas pelo espanhol Manuel Estrada para essa obra. A estética
das imagens composta dos mais ricos processos de construção desse tipo de arte
dialoga em direto com a história narrada. Os traços simples e a constante
necessidade de fundir a imagem a escrita como se num jogo a imagem nascesse da
palavra, ou seu contrário, colocam uma via muita estreita entre o que se conta
no enredo escrito e o que se conta no enredo imagético.
[Texto de Pedro Fernandes de Oliveira Neto. Publicado inicialmente no Blog Letras in.verso e re.verso]