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Contra a corrente

José Saramago é um exemplo, um estilo digníssimo de vida e de literatura que nos mostra a possibilidade de navegar contra a corrente. A sua preocupação ética, o seu pessimismo solidário, a sua inteligência limpa, o seu gosto pela palavra exata, a sua capacidade para contar e meditar ao mesmo tempo, navegam através dos livros com um rumo seguro. É o seu próprio rumo, a pegada dos passos peregrinos que correspondem ao caderno da bússola da sua consciência.

A sua palavra tem a qualidade do anti-congelante, de um remédio pessoal contra os vendavais do cinismo, as palavras que flutuam ocas, as frases que se desentendem do mundo, sem a preocupação de pensarem o que dizem ou de dizer o que pensam.

Quando alguém se atreve a nomear a miséria, a solidão, a cegueira ética, as evidências do poder, corre o perigo de ficar só, de passar por ingênuo ou por perturbador, por um sentimental sonâmbulo ou por um ideólogo visionário. Preferimos não interpretar, não ver, ouvir pouco os gritos que vêm da rua. Está na moda criticar os moralistas, definindo-os com desprezo como personagens «politicamente corretas».

Devemos agradecer a Saramago essa «intrépida e estranha vulgaridade» de ser um cidadão politicamente correto quando o deve ser, e de jogar de maneira fértil com as incorreções da verdadeira rebeldia. Mostra-nos que o compromisso político não é incompatível com a imaginação livre, com as exigências criativas da literatura. Walter Benjamin explicou que os poetas e os romancistas são produtores tecnicamente vinculados ao seu trabalho. O compromisso de Saramago supõe forçosamente uma ética literária, um modo de pensar em escrita. Com as suas descrições minuciosas e os seus labirintos interiores, com a sua dignidade de cipreste cansado e de antigo resistente, com a sua proximidade de companheiro de viagem, Saramago significa o respeito pela palavra, a autoridade da literatura.

O exemplo de Saramago lembra-nos que a utilidade dos livros não depende nem dos êxitos de vendas nem dos elitismos fechados, essa velha pedantaria ensimesmada que se quer impor de novo na sociedade cultural espanhola. A literatura é útil quando consegue compreender e contar, narrar o mundo, o fulgor e as sombras da condição humana.


Luis García Montero. El Mundo, 9 de Outubro de 1998

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Um universo ético
 
A concessão do Prêmio Nobel a José Saramago vem reparar uma velha injustiça da Academia sueca para com Portugal e para com as literaturas de língua portuguesa. É uma homenagem merecida a uma personalidade relevante no campo da criação literária do nosso tempo e de certo modo também uma consciência ética desperta, eficaz e incômoda.
 
Diz-se que todo o grande escritor tem um mundo próprio e uma linguagem própria para o expressar. O mundo próprio de Saramago arranca de raízes muito profundas na sua terra natal, do Ribatejo. Recomendo a quem faça agora uma aproximação pela primeira vez à obra de Saramago, que leia as suas crônicas recolhidas em dois volumes publicados em castelhano: Deste mundo e do outro (1985) e A Bagagem do viajante (1983).
 
Nesses livros encontra-se a pré-história de um grande escritor, um mundo rural, economicamente muito precário, mas pleno de esperança e solidariedade. Este é o mundo de Saramago e por isso, para ele, o marxismo, mais do que uma ideologia política, é um humanismo de raiz quase religiosa, embora isso soe a paradoxo num homem que se declara agnóstico e que vive como um ateu.
 
Na obra de Saramago, em todos os seus romances, a mulher tem um papel relevante, talvez porque no mundo dos pobres a mulher se vê obrigada a cultivar dia a dia as virtudes de um heroísmo anônimo que não lhe é reconhecido. Em todos os romances de Saramago, a protagonista tem mais valor do que o protagonista. Mulheres sonhadoras e realistas, sacrificadas, capazes de um amor que é o que o amor essencialmente deve ser: generoso. A mulher, na casa do pobre, é a consciência aberta da dignidade.
 
Um tema interessante para os dias de hoje seria a desconfiança de Saramago em relação à Europa dos tecnocratas. Um romance, A Jangada de Pedra, é o testemunho desta desconfiança perante uma Europa na qual realmente não sabemos qual é o papel reservado a nós, países do sul. Talvez o de porteiros, o de operários agrícolas, o de criados de quarto.
 
Escritor de uma fina consciência ética, a grandeza da sua obra mede-se pela vileza dos seus inimigos. Hoje mesmo, algumas instituições expunham as suas reservas perante a obra de um escritor comunista e ateu. Quem sabe não entendam que, por baixo deste aparente ateísmo, esconde-se uma fome de justiça que é a essência da religião, e por baixo do seu marxismo militante esta mesma ânsia de justiça quer encontrar caminhos de eficácia.


Basilio Losada. El Mundo, 10 de Outubro de 1998

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