Um realista com a coragem para o fantástico
Albrecht Buschmann. Die Welt, 9 de Outubro de 1998
Ensaio sobre a Cegueira é o titulo de um dos romances de José Saramago. Se olharmos para o relacionamento entre a Academia Real Sueca e a literatura portuguesa, bem parece que Estocolmo sofre de cegueira. Até agora, nunca um português conseguiu ganhar esta distinção, nem sequer Fernando Pessoa, embora não devamos esquecer que ele só conseguiu o reconhecimento literário após a sua morte, nem Miguel Torga, o mestre do neo-realismo português.
Mais fortes eram as especulações nos últimos anos de que era a vez de um português, tanto mais que havia dois candidatos de reconhecido renome: António Lobo Antunes e José Saramago. A Academia decidiu-se pelo mais velho e mais popular dos dois candidatos. Saramago tem 76 anos e publicou nos últimos 30 anos romances que tanto têm efeito junto do grande público, como também são literariamente versados. Pelo contrário, Lobo Antunes tem apenas 55 anos, o seu ajuste de contas com a mais recente história portuguesa provoca escândalos, são sucessos de folhetins mas não encontram ecos no grande público.
Nascido de uma família de trabalhadores rurais, Saramago era ainda uma criança quando veio para Lisboa onde o seu pai trabalhava como polícia. O salário do pai não chegava para pagar o ensino superior. Saramago aprendeu o ofício de serralheiro mecânico, e passo a passo foi progredindo: para desenhador técnico, para empregado numa editora, para leitor numa editora. Nos anos 60, as suas primeiras críticas literárias são publicados em revistas, o seu primeiro livro é um livro de poesia.
O seu dinheiro, ganha-o entretanto como redactor em diferentes jornais diários. Entretanto, na sequência da Revolução dos Cravos, em 1974, Saramago torna-se membro do Partido Comunista, e redactor-chefe do Diário de Notícias. No entanto, apenas por um ano. Já com 52 anos decide trabalhar como escritor independente.
A sua marca passa a ser um estilo metafórico com coragem para o fantástico, uma arte para inventar histórias sem nunca esquecer a responsabilidade social do escritor. Uma mistura, devido à qual tem sido comparado com autores latino-americanos e com o realismo mágico dos mesmos. O, até agora, mais alto agraciamento do romancista que só tardiamente sentiu a sua vocação, foi no ano transacto onde recebeu o Prêmio Camões, o mais valioso prémio do mundo lusitano.
Em 1977 publicou-se em Portugal o seu Manual de Pintura e Caligrafia (em alemão em 1990), o romance com traços de autobiografia de um pintor que pinta por encomenda e que nos tempos perturbados da Revolução dos Cravos se transforma num escritor consciente de si mesmo. O caráter político da sua escrita vem a lume no seu segundo romance, Levantado do chão (1980, em alemão em 1985). Com extensão épica, conta-nos a história da família dos trabalhadores agrícolas Mau-Tempo desde o princípio do século até à revolução de 1974, após a qual os subjugados trabalhadores rurais se têm «levantado do chão».
O grande êxito surgiu com o Memorial do Convento (1982, em alemão em 1988). Neste romance, Saramago mostra toda a sua capacidade de escritor. À volta da construção de um convento expõe uma critica política (a megalomania do rei relacionada com os ditadores portugueses da época moderna) com uma arte de contar intemporal: níveis de tempos, vozes de figuras, mitos e modelos literários confluem num rio polifônico de histórias que, no entanto, ao contrário de outros autores denominados de pós-modernos, não se centra em si próprio, mas que continua a ser transmissível ao leitor médio.
Quando o Estado português, contrariamente à sua primeira intenção, não quis propor o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo para o Prêmio Literário Europeu por suposto receio de ferir sentimentos religiosos, Saramago mudou-se para Lanzarote, onde vive até hoje.
Esteve na Alemanha, em 1997, quando Portugal foi o país-tema da Feira do Livro de Frankfurt e levou com ele o romance Ensaio sobre a Cegueira para sessões literárias, uma parábola onde o leitmotiv da sua escrita, a visão, se tornava no ponto central. Conta-se aí como numa cidade alastra, de um momento para o outro, uma misteriosa epidemia de cegueira e como de repente todas as regras sociais ficam anuladas. Nos seus livros anteriores tinha sido esta a pergunta que, através do narrador, ele se punha constantemente e constantemente tinha posto em dúvida, e que agora passou a todos nós: o que fazemos quando deixamos de ver? A sua visão era a de um pessimista e a sua resposta era: o nosso comportamento volta a ser como o de animais selvagens. No fim do livro, os fantasmas acabam, mas a pergunta continua.
Albrecht Buschmann. Die Welt, 9 de Outubro de 1998