Jangada das ficções
ONTEM, HOJE, AMANHÃ. Todo o passado, e também o futuro atravessou, sempre de novo, o presente, carregado do misticismo, dos contos de José Saramago. É por isto que ainda há milagres na obra do escritor português. Agora, Saramago foi distinguido com o Prêmio Nobel da Literatura. Ele, o romancista, desde sempre preso nas malhas da ficção que ele próprio teceu, sabia há anos que tinha conseguido uma anotação nas agendas do júri de Estocolmo. Sendo assim: nova candidatura?
Que sorte! Nove livros de Saramago existem na língua alemã (todos da editora Rowohlt), oito novelas, um volume de contos. E não existe uma única obra em que na versão oficial da história não se tenha infiltrado o subversivo da ficção. Nenhuma em que o Juste Milieu da história oficiosa de Portugal não tenha sido minado por fábulas. Tudo começou com o romance (largamente ignorado pela crítica alemã) Levantado do Chão, um conto maravilhosamente rico: uma crônica do mais pobre dos pobres. E assim continuou até ao ano passado quando, por altura da Feira do Livro de Frankfurt e devido ao fato de Portugal ser o tema principal da Feira, foi editado Ensaio sobre a Cegueira: uma parábola assustadora sobre a razão cega debaixo do reino dos instintos.
Saramago, que é oriundo de uma família pobre de trabalhadores rurais, sendo um autor de esquerda que ainda hoje se denomina comunista, confronta o leitor com um pessimismo sem limites contra o qual se levanta sempre de novo um humanismo moral. Na sua obra isto acontece sob a forma de inúmeros milagres, mistérios sem fim. Quem fala? As vítimas, os agressores. Homens e mulheres, o autor - e o leitor escuta uma polifonia portuguesa. «Começa-se a contar uma história», assim podemos ler em Levantado do Chão, «mas esta está a ser ultrapassada por outras». Saramago variou este credo criando sempre de novo uma densa textura de vozes, de episódios e derivações que o grande fabulista expõe num tom irónico que, mesmo sendo soberano, conhece muito bem o coquete e também os maneirismos. Quem lê Saramago, ouve uma voz poderosa como a de um órgão barroco, que abre todos os registos do sarcasmo e da compaixão. O cinismo revolta-se perante a impotência da razão. A tristeza manifesta-se perante a surdez dos sentimentos. As histórias de Saramago tocam-nos - maliciosas tanto em relação aos heróis como aos santos. Pois só aí reside a veracidade frente à história lusitana.
José Saramago que, ao lado de António Lobo Antunes, é o mais representativo escritor contemporâneo português e cujas obras foram traduzidas em 25 línguas, imaginou um cosmos literário onde não pode haver nacionalismo sem mito, nem futuro sem razão. No entanto, o autor vê nisto tudo menos uma razão instrumental, mas antes uma razão que se fundamenta no telúrico. Racionalismo e mito: ambos se encontram na linha de demarcação entre a tradição portuguesa e o modernismo europeu. De modo tão exemplar no seu romance A Jangada de Pedra, na qual a Península Ibérica se separa de um modo inexplicável do continente europeu, anda à deriva no Atlântico e, no entanto, é a convulsão teutônica que arrasta atrás de si as convulsões sociais. A jangada como foco de crises de repúdio moral: acerca deste mito moderno ironizou Saramago, nos finais dos anos oitenta: o mito da Europa unida; uma vez mais, escreveu uma história prolixa e, como sempre, à deriva pelo espaço e pelo tempo, enquanto as perspectivas da história mudam, permitindo ao idioma falado um sentido próprio que, uma vez mais, se revolta de modo subversivo contra a interpretação da historiografia oficial (como é também o caso de outros grandes portugueses como Lobo Antunes ou Cardoso Pires). As hipotecas morais do papão lusitano são uma carga. Assim se passa, por exemplo, em Mafra, que se transformou no símbolo do híbrido humano, um gigantesco edifício barroco, temporariamente jugo para 50 000 trabalhadores. Para várias gerações do país, este empreendimento louco do século XVIII representou um esforço mortífero. No seu romance Memorial do Convento, o leitor é confrontado com a ordem barroca como uma esquizofrenia transformada em pedra e é envolvido numa memória dos tempos em que os divertimentos eram bárbaros e as barbaridades eram festas. A transformação da história dá-se através das possibilidades da ficção: os romances de Saramago acreditam neste potencial e é neste potencial que se embriagam os seus episódios. Assim acontece também no romance História do cerco de Lisboa, onde a intervenção na história através da pena do corrector é intencional. Uma boa ação? Uma má ação? É neste golpe de mão que a fantasia obtém a sua vitória sobre os supostos heroísmos dos cruzados medievais. «Onde conta o imaginário», diz-se algures, «tudo e qualquer coisa é fabricado pondo tudo constantemente em dúvida».
Pôr tudo em dúvida. É esta a atitude político-moral do autor e, ao mesmo tempo, a sua perspectiva literária sob a qual o realismo de Saramago tanto se revolta contra as continuidades da história portuguesa como também evidencia as suas rupturas. As feridas supuram, as cicatrizes não fecham. Atrozes são as dores fantasmagóricas de uma potência colonial, de uma potência mundial no início da era moderna, de uma ditadura no início da época moderna da história portuguesa. O que é o passado? Para Saramago uma tragédia das ilusões. A colonização dos corpos e das almas durante o feudalismo, depois ainda mais durante os anos do regime de Salazar: é disto que tratam as histórias expostas em excesso às imagens.
Causou estranheza que na sua última obra traduzido para alemão, Ensaio sobre a Cegueira, este furor das imagens parecesse dominado, tanto mais que a visão de Saramago foi aqui levada ao horror total. Todas as ilusões, todos os equívocos de que o autor tanto gosta, não estão aqui à mercê da anulação irónica. Assim sendo, esta visão apocalíptica, esta alegoria à cegueira da razão, na qual as sete personagens principais são mandadas para uma odisseia horrível, é simultaneamente uma odisseia moderna através da falta de dignidade. Através do assassínio, da violação, da chantagem e do roubo. Depois de uma epidemia de infâmia, o leitor vê-se confrontado - ironia arrepiante? - com um final sentimental, em que os cegos recuperam a sua visão e enfrentam um mundo por eles devastado, expostos agora a uma culpa sem culpa.
Viagem de horror ao futuro, expedição horrorosa ao passado. Ontem, hoje, amanhã: com todo o seu realismo, com todo o seu empenhamento, o cosmos de Saramago é o território dos grandes mistérios, dos verdadeiros milagres, que resistem à interpretação, à conclusão, à explicação. Também quando Ricardo Reis atravessa a obra de Saramago. Reis é algumas vezes protagonista como, por exemplo, no romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. Aí é um homem abatido, um amante enxangue, seguramente um grande poeta. Mas um intelectual zé-ninguém. Ou então aparece, numa cena muito curta, num outro sítio da obra, em Levantado do chão, como eterno salvador da vida. Como o eterno estranho.
Em 1996, no dia em que foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura, José Saramago tinha desligado o telefone na sua casa em Lanzarote. Demasiadas vezes nos últimos anos, amigos bem intencionados lhe tinham telefonado, dando-lhe uma notícia que acabaria por mostrar-se como sendo falsa. Agora, José Saramago recebeu a boa nova precisamente a caminho do aeroporto. Neste caso pode dizer-se: a ficção não conseguiu escapar ao seu destino.
Christian Thomas. Frankfurter Rundschau, 9 de Outubro de 1998