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Aquele que canta Portugal e os seus Mitos


Certos autores mergulham muito cedo na espessa floresta da criação literária. Outros, pelo contrário, esperam. Jean Marie Gustave Le Clézio diz do livro que ele é o fruto que deve amadurecer longamente, como se a vida, com as suas voltas e reveses, tivesse a obrigação de o alimentar. José Saramago [...] entrou, como se costuma dizer, «tarde» na literatura [...].

Autor de vários livros de poesia, de contos, de crônicas, de peças de teatro, é sobretudo conhecido em França pela sua obra romanesca. Descobrimo-lo em 1987, graças a Anne-Marie Métaillé que dirigia então a seção portuguesa das edições Albin Michel. Memorial do Convento é um livro poderoso, feroz. Este romance era na verdade o seu décimo sétimo livro. Tudo quanto faz a força da sua obra é visível nesta narrativa épica, que mais não é do que uma descrição minuciosa e barroca da Lisboa do século XVIII, pouco antes desta ser destruída pelo famoso e terrível tremor de terra de 1 de Novembro de 1755. Voltaire fez do acontecimento, como se sabe, uma descrição terrível no Candide. José Saramago escolheu um ponto de vista diferente.

Cantando a Lisboa de D. José I, «princesa das cidades do mundo, diante da qual se apaga o mar profundo», para citar as palavras de Camões, ele faz obra de historiador perplexo e cético. Evoca as feiticeiras e a Inquisição, os escravos e as epidemias, a alquimia e os rituais da corte. No centro do romance, o imenso palácio-convento de Mafra, construído por soberanos portugueses preocupados em rivalizar com o poder espanhol, e que só albergou vento e morte. Já terão compreendido que, como todos os grandes escritores, José Saramago fixa como balizas literárias nada menos do que o universo. Lisboa é o mundo; Mafra, o que a loucura dos homens aí instalou; o tremor de terra, o sinal de que uma justiça divina é sempre possível. O romancista inventa a História, não é sua testemunha, mas participante ativo.

Uma literatura do excesso

A literatura portuguesa contemporânea é rica e plural. Se Lídia Jorge prefere narrar o povo, a terra, a cidade e a sua nostalgia, se Lobo Antunes parece fascinado pelo passado político e pela descolonização ligada à guerra de Angola, Saramago propõe uma terceira via, a meu ver mais rica, mais complexa, mais audaciosa. Assim, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, ele ataca o mito lusitano por excelência: o intocável Fernando Pessoa, pelo menos na pessoa do seu «heterônimo» Ricardo Reis, o latinista meio-helenista, médico monárquico, adepto de um «neo-paganismo indisciplinado». Enxertando uma ficção noutra ficção- a personagem criada por Pessoa não existe -, José Saramago lembra que a literatura é talvez um dos meios escolhidos pela mentira para se atingir a verdade. O que constitui um dos temas principais de uma obra vasta e variada.

Contrariamente a vários escritores franceses que se comprazem na introspecção do ínfimo, do cotidiano, do quase nada, José Saramago pratica uma literatura do excesso, da desmesura, da expansão. As personagens nele têm sempre a ver com a História, os grandes caos temporais, a vida no que esta pode conter de ruidoso ou de inaudível. Tomemos como exemplo a História do cerco de Lisboa. Como ponto de partida, um erro voluntário de datilografia. Um sim que se transforma num não, e o capricho de um historiador, contudo eminente, que se transforma em contra-verdade.

Raimundo Silva, o herói malgré lui da História do cerco de Lisboa, dá-nos a ler, sem ter disso consciência, mensagens que seria ingénuo não atribuir a José Saramago. Claro que ele não é seu porta-voz, mas como não estabelecer uma semelhança quando ele nos lembra que uma intrujice pode levar direitinho à paixão, ou que a História e a literatura fornecem ao pensamento excelentes materiais, ou que a intuição abre mais portas do que o intelectualismo.

Ao publicar, em 1993, o Evangelho segundo Jesus Cristo, não fez obra de iconoclasta. O seu Cristo, como o que aparece nas fachadas das igrejas e das janelas do século XVIII, pertence ao mundo e é portador de uma mensagem de esperança. Participando do debate voltairiano entre Deus, o Diabo e Jesus, Saramago propõe ao homem algumas vias de salvação, portas não de saída mas de entrada na vida. A sua rebelião é pois uma reflexão sobre o presente, sobre o lugar do homem que deixou de estar no centro do universo, como professava o Renascimento, mas que também não está perdido e à deriva, como defendia o barroco.

Em A Jangada de Pedra, José Saramago emite uma hipótese: a Península Ibérica, em consequência de um cataclismo, desprende-se da Europa, vai bater nos Açores, antes de parar não se sabe onde para os lados de África. Por um lado, o romance pode ser lido como uma soberba história de amor (sentimento que é sem dúvida o único a poder salvar a humanidade). Do outro, uma imagem simbólica, uma estranha profecia, uma tomada de posição. Saramago, que efectua incursões profundas pelo passado, pela mitologia, pela história literária, pelas religiões, pelos saberes, deseja acima de tudo falar do presente e de um futuro próximo.

Identidade nova

É nesta ótica que é preciso situar a obra de Saramago, escritor português instalado na realidade do seu país. Nesta Europa, que sempre foi uma realidade «intranquila», ele propõe uma reflexão sobre Portugal em busca de uma nova identidade. Como grande escritor que é, transforma esta questão particular em problemática de interesse geral. A sua «mensagem» é muito clara: cuidado, a História anda mais depressa do que o pensamento.


Gérard de Cortanze. Le Figaro, 9 de Outubro de 1998

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Um Nobel indiscutível. Saramago, uma obra barroca e sutil

O Prêmio Nobel de literatura 1998 foi atribuído ao autor português José Saramago. Com 75 anos (fará 76 a 18 de Novembro próximo), aquele que é considerado um dos mais importantes escritores portugueses e europeus é enfim coroado. Todos os anos, o seu nome figurava nas listas mais sérias dos escritores «nobelizáveis».

No ano passado, os meios literários de Estocolmo, nunca falhos de ideias, tinham imaginado uma taluda Saramago-Lobo Antunes. No fim de contas, os jurados suecos puseram toda a gente de acordo ao contemplarem o dramaturgo e actor italiano autoproclamado bobo da corte, Dario Fo. Uma decisão que surpreendeu e consternou uma boa parte dos apaixonados da literatura, desgastando uma vez mais a reputação do Nobel. Ao escolher José Saramago, os jurados suecos recompensam um verdadeiro e consequente escritor.

Por ter «graças às suas parábolas alicerçadas na imaginação, na compaixão e na ironia, tornado de novo tangível uma realidade fugidia», este filho de camponeses modestos, titular de um diploma de serralheiro, e que foi também mecânico, funcionário público, jornalista e tradutor, irá receber no próximo dia 10 de Dezembro em Estocolmo, das mãos do rei Carlos XVI Gustavo da Suécia, um cheque de 7,6 milhões de coroas suecas, ou seja um pouco mais do que cinco milhões de francos. Um bom pé de meia para quem teve que abandonar muito cedo os estudos a fim de entrar na vida ativa.

Por falta de confiança nas suas capacidades, este francófilo declarado, leitor apaixonado dos historiadores Fernand Braudel, Jacques Le Goff e Georges Duby, levará muito tempo para dar a conhecer uma obra poética, romanesca e teatral cujo principal protagonista é Portugal. É de facto preciso esperar pelo início dos anos 80 para ver Saramago ter um verdadeiro êxito com o romance Memorial do Convento seguido de O Ano da Morte de Ricardo Reis. Para a Academia sueca, este romance, situado na Lisboa de 1936, então sob regime autoritário, «está mergulhado numa atmosfera de irrealidade habilmente evocada». Saramago faz reviver a personagem de Pessoa e fá-lo encontrar o seu criador, com o qual discute horas a fio sobre as coisas da vida.

Membro do Partido Comunista português desde 1969, casado com uma Sevilhana muito católica, José Saramago teve alguns dissabores em 1992 aquando da publicação do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo. Nesta leitura muito pessoal dos Evangelhos, o escritor mostra Jesus sob uma perspectiva pouco invejável. Uma polêmica rebentou inicialmente no seu país, e depois no Parlamento europeu, quando o governo português, considerando que o livro era «um atentado ao patrimônio religioso português», o riscou de uma lista de candidatos portugueses aos prémios europeus de literatura. O facto não diminuiu de modo algum a influência do escritor em Portugal, visto que ele recebeu em 1995 o Prêmio Camões, considerado o prêmio literário português mais importante.

Tomando conhecimento da notícia no automóvel que o levava do aeroporto à Feira de Frankfurt, José Saramago declarou-se «não totalmente consciente» do que lhe acontecia, antes de acrescentar «não é uma surpresa total porque já há cinco ou seis anos que o meu nome circula».

Por seu lado, o Osservatore Romano, órgão da imprensa do Vaticano, criticou a atribuição do Nobel ao escritor português: «Saramago - escreve o Osservatore - permaneceu ideologicamente um comunista» e a sua obra O Evangelho segundo Jesus Cristo, publicado em 1992, demonstra uma «visão substancialmente anti-religiosa».


Bruno Corty. Le Figaro, 9 de Outubro de 1998