A crónica como aprendizagem: uma experiência pessoal*
Algumas vezes, nestes acasos da escrita e de reflexão sobre ela, me tenho interrogado sobre a relação que haja entre o saber e os seus repositórios enciclopédicos e dicionarísticos. Refiro-me àquilo a que costumamos chamar «saber comum», não aos grandes temas que, pela sua complexidade e extensão, reclamam um tipo de tratamento informativo que pressupõe, por sua vez, da parte do leitor, um conhecimento básico relativamente desenvolvido. Não se passam assim as coisas com o «saber comum», em geral recolhido nessas obras de consulta de um modo que diríamos indiferente, não crítico, ao ponto de se tornar legítimo duvidar, afinal, se é para informar segundo critérios científicos que certas enciclopédias existem ou para instalar opiniões e juízos sumários nos espíritos curiosos que a elas recorrem.
Estas palavras de abertura, que seguramente comportam algum exagero e não pouca injustiça, ocorrem-me com toda a naturalidade a propósito do tema que aqui nos reuniu; «A crónica como género literário». É que, a acreditar na informação recebida agora mesmo de uma das enciclopédias com que me tenho ajudado para orientar-me neste vasto mundo, a crónica de que aqui falamos não pode ser classificada de género, porquanto não passa de um subgénero, e muito menos terá cabimento na literatura, sendo, como se afirma também, mero jornalismo e mera quotidianidade. Exceptua-se da redutora definição, claro está, a outra crónica, aquela, antiga, dos reinados, das dinastias e das instituições, durante muito tempo simples registo de acontecimentos, em anais e décadas, e, no caso português, a partir do século xv, acedendo, com Fernão Lopes, a um nível literário superior. Porém, a realidade é sempre mais forte do que as definições com que pretendemos discipliná-la, e este Encontro, embora pecando por uma aparente adesão aos critérios judicativos da enciclopédia (a ninguém ocorreria, por exemplo, propor a debate o tema «O romance como género literário»), virá homologar, sem dúvida, o que a mesma realidade nos mostra todos os dias e em todos os lugares do mundo; que a crónica, não só tem o seu lugar na literatura como é, em muitos casos, uma das suas mais completas e acabadas expressões.
Buscando uma definição mais adequada e simultaneamente mais ampla e específica da crónica, diríamos que ela corresponde, em geral, a um texto curto, consequência quer de uma inspiração imediata e não necessariamente aprofundada quer de um diálogo deliberado com o quotidiano ocasional, mas sempre exigindo do escritor, num caso como no outro, capacidade de medida e de concentração, a par de sensibilidade a estímulos que à primeira impressão poderão parecer de pouca relevância, mas que virão a ser, porventura, os que mais fundo hão-de penetrar no espírito do leitor. Dentro de um molde tão flexível, escusado seria dizê-lo, cabem todos os diversos modos e tons pelos quais se expressam habitualmente os cronistas do nosso planeta, desde o lírico ao patético, desde o sério ao irónico, desde a mais rigorosa preocupação objectivista ao abandono às subjectividades mais íntimas. E, quiçá tanto quanto o poema, a crónica será o género literário em que mais produtivamente é possível criar uma atmosfera propícia ao que denominaríamos, na falta doutra expressão mais rigorosa, a sempre activa tentação confessional do autor.
Feitas estas considerações gerais, evidentemente desprovidas de qualquer pretensão de originalidade, porém necessárias como introdução à abordagem pessoal do tema, a que estamos obrigados pelo próprio título desta comunicação – A crónica como aprendizagem: uma experiência pessoal –, e não obstante a dificuldade intransponível que representa o facto de nos referirmos a textos desconhecidos de quem nos escuta, é a altura de declarar que a nossa prática da crónica, exercida grosso modo ao longo de cinco anos, entre 1968 e 1972, veio a demonstrar-se factor decisivo na definição de uma das nossas actividades subsequentes – a de romancista. Seria tentador, mas sem dúvida especioso, imaginar agora que romances poderíamos haver escrito se durante todo aquele tempo não tivéssemos, regularmente, às vezes em dias sucessivos, composto, nas poucas folhas de papel convencionadas, um pequeno enredo, um comentário, uma reflexão, reconstituindo memórias, procurando o sentido último de um acontecimento, ou, para tudo resumir em três acções concomitantes, fixando o tempo, situando o sujeito, recriando a palavra. Porém, já sabemos que o único itinerário permitido é aquele que parte do que foi para o que veio a ser: a viagem para o que poderia ter sido é impossível. Com excepções, como veremos adiante...
É pois verdade que, interrogados sobre o significado e a importância que essas crónicas tiveram no nosso trabalho de romancista, mais de uma vez respondemos: «Tudo o que está nos romances pode ser encontrado nas crónicas.» E à pergunta, ingénua mas inevitável, de se ao escrever aqueles textos breves nos estávamos preparando, conscientemente, para o romance, a única resposta honesta que podíamos dar, e temos dado, foi a de que, então, nos encontrávamos tão longe da simples ideia de um dia virmos a escrever histórias de trezentas ou quatrocentas páginas como longe da Terra está hoje a sonda Voyager. De todo o modo, os factos estão à vista: entre a primeira linha da primeira crónica e a última linha do último romance, parece ser discernível um fio contínuo ligando tudo, ao mesmo tempo que se identifica uma lógica condutora que em tudo reconhece um sentido.
Vários pontos, nessas crónicas, poderão ser retidos se se quiser caracterizar, no seu autor, tanto uma forma de escrever como um modo de sentir: em primeiro lugar, certa coincidência de atitude entre a crónica e o poema lírico (articulação com o momento presente, brevidade do texto, possibilidade de captação das ressonâncias evocativas do seu sentido); em segundo lugar, a prática constante de uma prosa medida, susceptível de criar no escritor um treino dos recursos estilísticos em função da densidade e da economia expressivas; em terceiro lugar, o hábito de colocar em conjunção de interesses a dinâmica do tempo que se vive, a sensibilidade do sujeito que o vive e as potencialidades verbais susceptíveis de definirem essa mesma expressão.
É a partir destes pontos, por assim dizer fundadores, que se vão orientar as manifestações mais explícitas da actividade do cronista, não só no que diz respeito à temática: a relação identidade/alteridade, a articulação entre o homem e a terra, o projecto humano e a sua transposição ou transcendência, a concepção do homo viatora e a sua incidência temporal; não só também no que diz respeito à constelação de motivos preferenciais ou tendenciais que preenchem essa temática: a água, a embarcação, a estreia, o silêncio, a pedra, o rumor – mas também nas atitudes dominantes: um cepticismo radical, no limite do desengano, mas apesar de tudo permeável à esperança; uma frase que se quer tensa, mas que não se fecha à irrupção lírica; uma mordacidade que não exclui a ternura, uma ironia quase sempre cúmplice dessa outra que o cronista dirige contra si mesmo.
Diversíssimas foram as áreas cobertas por estas crónicas, dependentes das naturais sugestões do quotidiano e da vida interior, mas também, não o esqueçamos, condicionadas na sua comunicação essencial e formal por uma situação de censura, de diminuição da liberdade de expressão. É a partir dessa múltipla teia de factores, ora restritivos ora estimulantes, que se articulam, adicionam e potencializam as áreas de observação e de evocação que, numa derradeira análise, definem esses textos. Neles tem lugar a actualidade (parte-se por vezes duma notícia de jornal), a memória (regressa-se à infância, suas marcas, suas recordações, suas nostalgias), o ambiente (evoca-se a cidade, outras cidades conhecidas, o campo, os vários tipos de ruralidade), a tipologia humana (o amola-tesouras, o sapateiro, o cego do harmónio, os frequentadores de café, etc.), a sugestão frásica e vocabular (um verso, uma frase), a cultura (domínios da arte, vultos de escritores, leituras, etc.), e, finalmente, certas efabulações de tipo onírico, maravilhoso ou fantástico que mais tarde virão a concretizar-se na obra ficcional do cronista.
Do ponto de vista estrutural, parece possível identificar quase sempre nestes textos a presença de duas partes distintas: uma primeira parte de tratamento genérico do tema, sucedendo-se a sua especificação parcelar – sendo esta divisão submetida a variantes, que podem revestir as seguintes formas: enunciado de um tema/derivação para um tema afim; enunciado de um tema/derivação para um tema contrário ou contraditório; narração de um caso, ou fábula, ou história/considerações moralizantes (ou por ordem inversa); e outras. Quase sempre a arquitectura discursiva se bipolariza, mantendo como resultado uma tensão ideológica, ou a sua conversão através da ironia ou da conclusão (ou abertura) claramente moralizante. Esta construção dual do texto aponta igualmente para uma oscilação de soluções, para um compromisso incómodo, para a necessidade de escolha, e outras atitudes humanas definidas pela tensão, pela incerteza, ou mesmo pela incompatibilidade.
Chegado a esta altura da nossa exposição, eis que nos enfrentamos com a já mencionada dificuldade (se impossibilidade não é a palavra mais exacta) de falar de obras que são desconhecidas da grande maioria dos que nos escutam. Referimo-nos, precisamente, a esses romances para os quais a crónica foi insciente aprendizagem, que sem ela não teriam existido, ou teriam existido de outra maneira, para nós inimaginável. No entanto, cremos ser possível tornar evidente a todos vós essa espécie de indirecta relação de causa e efeito, se pusermos em paralelo o que antes apontámos (oscilação de soluções, compromisso incómodo, necessidade de escolha, tensão, incerteza, incompatibilidade) e os temas de dois ou três dos nossos romances, escritos nos anos mais recentes.
Vejamos, por exemplo, O Ano da Morte de Ricardo Reis, cujo protagonista é aquele heterónimo de Fernando Pessoa que tem o mesmo nome, e que fomos buscar ao imaginário exílio no Rio de Janeiro para o fazer regressar a Portugal depois da morte do seu criador, em 1935, e mostrar-lhe, a ele que um dia escrevera; «Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo» – mostrar-lhe esse mundo nas vésperas dos anos trágicos, ao mesmo tempo que fazíamos ressuscitar, não em fantasma, mas em corpo carnal e em espírito lúcido, o próprio Fernando Pessoa, para um impossível diálogo entre o que já não existe (Fernando Pessoa) e o que não existira nunca (Ricardo Reis).
Vejamos igualmente História do Cerco de Lisboa, um falso romance histórico, situado duplamente nos nossos dias e no século xii, e no qual simultaneamente se reconstituem e negam as circunstâncias de uma batalha e de uma conquista – a de Lisboa, no ano de 1147, quando, com o auxílio de cruzados que navegavam para a Terra Santa, os portugueses tomaram a cidade, depois de um assédio de cinco meses. O protagonista, um revisor de imprensa, ao fazer a correcção tipográfica de um livro que igualmente se intitula História do Cerco de Lisboa e que é obra de um historiador, introduz uma palavra no texto, a palavra «não», invertendo assim a verdade histórica e passando o livro a dizer que os cruzados não ajudaram os portugueses a cercar e tomar Lisboa. No lugar do sim o não, no lugar do não o talvez.
E finalmente A Jangada de Pedra, essa Península Ibérica que se separa da Europa e sobre as águas do Atlântico voga para o Sul, a caminho do sonho ainda possível, de um novo encontro com a história, de uma esperança e de um projecto para um humanismo recuperado. Sim, não, talvez...
Deveria terminar pedindo desculpa de ter ocupado tanto do vosso tempo, e mais ainda por havê-lo ocupado tão egoistamente, falando de mim e do que tenho escrito. Mas o aviso estava feito desde o princípio; uma experiência pessoal. Deixo-vo-la por aquilo que valha: sim, não, talvez...
José Saramago
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* Fonte: Site da Fundação José Saramago
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