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Luciana Stegagno Picchio e José Saramago, Lisboa 11-11-99, apresentação do livro Mar Aberto. Foto Lusa/André Kosters 1999 Fonte: Instituto Camões


Saramago: momento por todos esperado


Ainda que este universo lusófono contasse com grandes tradições literárias tanto em Portugal como no Brasil e com uma nova impetuosa tradição de escritores africanos de expressão portuguesa. Esperávamos este momento há tempo. Esperamos que acontecesse para o velho rapsodo Jorge Amado e para poetas de elite como João Cabral de Melo Neto. Mas sobretudo para um escritor como ele, José Saramago, no qual há vários anos vivíamos o candidato mais legítimo, mais prestigioso, mais nosso: e pelo qual sofríamos esperando a cada outubro, como quem aguarda com angústia confiante a chegada de sua bagagem na esteira rolante do aeroporto, sem que ela nunca desponte.

A decepção agridoce, para nós italianos, do ano passado, quando Dario Fo ganhara na linha de chegada logo de José Saramago, nos deixara uma grande margem de esperança. A história do Nobel nos ensinou pelo menos, como já na época do prêmio para Octavio Paz, a jogar com as probabilidades. Apesar de seu corpo ágil e longilíneo de adolescente e o sorriso de quem, aos 76 anos, pensa em um futuro operoso e sereno do lado de Pilar, a jovem mulher espanhola que o acompanhará a Estocolmo, mostrando para o mundo como pode ser bonito um casal de intelectuais, Saramago em sua longa vida teve, como todos, facilidades e decepções. Sobretudo de seu país.

Comunista militante, nunca faccioso, sempre crítico, nunca trânsfuga, tivera que esperar o fim do salazarismo e a Revolução dos Cravos do abril de 1974 para poder despontar com pleno direito na cena literária portuguesa e internacional. E fora logo um sucesso, como de quem, na sombra da espera, tivesse afiado seus instrumentos. Viera antes a poesia, com os Poemas possíveis (1966) e Provavelmente alegria (1971), que, na distância de ano, revelam hoje toda sua carga humana e profética: “Só direi,/Crispadamente recolhido e mudo,/que quem se cala quanto me calei,/não poderá morrer sem dizer tudo”. Depois apareceram as primeiras coletâneas de crônicas: Deste mundo e do outro (1971), A bagagem do viajante (1974), como provas de redação que contivessem já em seu casulo todos os motivos da narrativa futura. Em seguida o teatro (começando com A Noite, 1979), que hoje nos parece obra de um autor “outro”, tanto discursivo, referencial e polêmico quanto a prosa de invenção é misteriosa, alusiva, poética. A motivação do Nobel fala de um Saramago “que com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”. E talvez este seja o melhor rótulo para uma obra que, apesar de minuciosamente ambientada numa época e numa ideologia (a Lisboa inquisitorial do começo do século XVIII, a Lisboa das origens, ainda dividida entre mouros e cristãos, os anos do franquismo e de seu contágio ao Portugal salazarista, a Palestina de uma Vida de Jesus ao lado do Homem), nunca aparece como mera revisitação do fato histórico, mas sua parábola, pretexto para a interpretação de um hoje que filtra o passado com o alheamento comovido e irônico do depois.

O novo Saramago, um intelectual já amadurecido que vive desde sempre em Lisboa, mas que fora do círculo dos amigos de trabalho e de café poucos conheciam, irrompe de repente na cena literária portuguesa em 1980, com um romance singular que o coloca de imediato no primeiro plano entre os narradores nacionais. E é aquele Levantado do chão, no qual pela primeira vez aparecia, numa saga camponesa de sabor ao primeiro olhar ainda realista, a sua organizadíssima cifra estilística. O “discurso oral” de Saramago, aquelas suas páginas lotadas de signos, sem maiúsculas e pontuação, era de fato capaz de reproduzir poeticamente, em som antes até do que em letras, uma história nacional e individual; as vicissitudes de três gerações de camponeses do Alentejo, as quais, através da luta de classe, levantando-se do chão, verticalizando-se no seu reconhecer-se enquanto homens, assurgiam como protagonistas de uma história que até aquele momento fora apanágio de seus patrões. A fama internacional virá logo em seguida, em 1984, com aquele Memorial do Convento, que permanece ainda hoje como sua obra mais famosa e da qual ele sairá para uma viagem de escrita, para uma aventura narrativa que no-lo restituirá escritor sem mais limitações regionais: um dos mais significativos narradores do nosso tempo.

O Memorial conta a construção, nas primeiras décadas do século XVIII, do Mosteiro e da Igreja de Mafra, erigidos com extraordinária magnificência nos arredores de Lisboa, por vontade do soberano absoluto D. João V. Romance histórico na minuciosa descrição da sociedade portuguesa, cortesã e popular, do começo do século, na suntuosidade barbaresca dos autos da fé promovidos por uma inquisição ainda imperante, torna-se romance social na evocação daquelas multidões de operários, carregadores braçais, canteiros, que foram os construtores materiais do templo. Mas torna-se romance de realismo fantástico na invenção dos personagens, primeiro entre todos aqueles de Blimunda, filha de marrana dos olhos claros e do belo nome germânico que não por acaso um músico como Azio Corghi depois escolheu como protagonista de sua recriação musical do romance.

Deste momento em diante, a inspiração de Saramago torna-se urgente. O ano da morte de Ricardo Reis (1984), que ambienta em uma Lisboa atingida pela vizinha guerra da Espanha a permanência na cidade de um heteronômio de Fernando Pessoa, sobrevivido por um ano à morte do poeta, talvez seja a mais poética, comovida homenagem à memória de quem hoje é considerado o maior poeta moderno português.

Assim como A jangada de pedra (1987) representa a saborosa e polêmica profissão de fé antieuropeísta do português Saramago, a História do cerco de Lisboa (1989) é uma sua jubilosa “correção” da história no nome da liberdade da interpretação. Mas o Saramago mais próximo de nós e para nós mais universal é sem dúvida o último. Aquele que, com o sofrido e humaníssimo Evangelho Segundo Jesus (1991), agüentou a incompreensão na pátria, escolhendo desde então o caminho do exílio em Lanzarote, nas Canárias. E mesmo aquele do qual, após o voluntário afastamento de Portugal e de sua “realidade sonora”, com a conseqüente imersão num universo da língua espanhola, todos tínhamos temido uma redução da sua sensibilidade “auditiva”: indispensável, nos parecia, para a criação daquela “literatura oral” da qual até aquele momento se substanciava a sua criação poética. Mas Saramago enxergou mais longe do que nós. E com as projeções brancas do seu romance Ensaio sobre a cegueira (1995) antes, e depois com o “burocrático” Todos os nomes (1997), soube imergir-nos em rarefeitas atmosferas de pesadelo e sonho.

Se a praxe acadêmica nos sugere por enquanto de defini-las kafkianas, no futuro talvez estas atmosferas sejam diretamente ligadas a ele, à sua fantasia, à sua humanidade, à sua capacidade de “ver” do que naturalmente de “ouvir”, naquela sua peculiaríssima recriação auditiva da realidade circunstante. Saramago gosta da Itália, onde tem muitos amigos, onde suas obras foram traduzidas até antes do que em outros países, onde recebeu os primeiros doutoramentos ad honorem e os primeiros prêmios literários. E para nós este prêmio longamente anunciado e finalmente concedido é como um Nobel para um escritor nosso.



Luciana Stegagno Picchio,  Jornal A Tarde, 05 de dezembro de 1998. Artigo traduzido do italiano para esta edição por Silvia La Regina, professora e ensaísta; este artigo foi publicado no jornal italiano La Repubblica e posteriormente, numa outra tradução, no Jornal de Letras de Lisboa.