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Deste mundo e do outro
Crônicas, 1971

Capa da primeira edição de Deste mundo  e do outro


























Importa dizer, desde já, que a José Saramago ficamos a dever um dos mais belos livros de crónicas até agora publicados em Portugal, e acrescentar que Deste Mundo e do Outro é, sem dúvida, o melhor livro deste poeta e crítico. Eis-nos perante uma obra que, todavia, apesar da quase total perfeição, não deixa de ser simultaneamente ambígua e cristalina, decifrada e obscura, aberta e ensombrada por numerosas situações confessionais de chave privada. Eis uma obra onde o escritor tende a oferecer-se ao leitor, não no sentido da comunhão que vai sendo habitual, mas ainda segundo uma forma tradicional em que integralmente se professa o duro ofício de pensar para escrever e que nos evoca Raul Brandão, Torga, Miguéis e os esquecidos cronistas deste século.

Estamos, sobretudo, perante uma prosa límpida, serena e bem medida, por vezes rigorosamente estudada ou com alguns clichés, mas mesmo assim de uma elegância que de há muito anda arredada dos nossos prosadores. Extenso poema em prosa, lembra-nos algumas das melhores páginas do Diário de Miguel Torga, na medida em que, sendo também um prolongamento de uma obra poética, possui todas aquelas qualidades que Antônio José Saraiva descobre na prosa do autor de A Criação do Mundo: "maravilhosamente dúctil, alada, leve, [...] dotada de justeza léxica, sobriedade e precisão de ritmo".

"Sente-se" Brandão nesta poesia amarga e nocturna, nestes belíssimos fragmentos de um amaríssimo monólogo da solidão, nestes imemoriais do passado, do desencanto, da inquietação e da angústia. "Carta para Josefa, minha avó" virá a ser considerado como um texto modelar sobre a perplexidade do nosso tempo, sendo, além disso, uma verdadeira peça de antologia. Só muito raros escritores conseguiram atingir, como José Saramago, nesta e noutras crónicas (destaco ainda, pela pungência, pela intensidade e pela extraordinária perfeição, "Três Horas da Madrugada" e o conto "Manuscrito Encontrado numa Garrafa"), aquela invejável posição do prosador nato que se situa entre o poeta, o ficcionista e o memorialista, entre o tranquilo cronista da vida quotidiana da nossa Lisboa e o desvendador de absurdos, entre o cronista impressionado pelo decurso de uma história onde por vezes irrompe o fantástico e o crítico compungido perante a doença social e moral.

Não será fácil classificar este livro caleidoscópico onde a realidade é atacada pelo irreal, onde o poeta incarna ainda o papel (talvez ultrapassado) do magoado comentador moral; onde alguns valores ainda chamados absolutos se impõem novamente com o brilho renovado de autênticas novidades. Nem será necessário classificá-lo: crónicas, contos, antecipação, memorialismo, confissão... que importa o rótulo? O que mais interessa é a nossa adesão. E essa tem-na Deste Mundo e do Outro. E total.
 
 
[PALMA-FERREIRA, João. Recessão crítica a Deste mundo e do outro. In: Revista Colóquio/Letras. Recessões críticas. n. 6, março de 1972, p.83-84]