A noite
Teatro, 1979
"Depois de ter feito jornais, escreveu sobre eles. Foi em "A Noite", a primeira obra dramática de Saramago que o escritor dedica a Luzia Maria Martins, a pessoa que o "achou capaz de escrever uma peça". Seria mesmo. A noite de que se fala nesta peça ficou para a história: de 24 para 25 de Abril. A acção passa-se na redacção de um jornal em Lisboa e autor avisa: "Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente." Nem outra coisa seria de esperar. A ironia passa também pela história desta noite em que administradores e redactores entram em conflito. Uns a gritar que a máquina "há-de parar" e outros a defender que ela "há-de andar". Quando o escreveu, Saramago já sabia que, para o bem e para o mal, a máquina tinha continuado a andar. "A Noite" chegou aos palcos em Maio de 1979 pelo Grupo de Teatro de Campolide. Com encenação de Joaquim Benite e direcção musical de Carlos Paredes, a peça contava, entre outros, com a participação de António Assunção no papel do chefe de redacção Abílio Valadares."
[Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998]
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Não é a primeira vez que vemos um poeta ou um romancista desviar-se da produção habitual, em que ganhou fama, e às vezes proveito, para tentar o teatro. O teatro é, na verdade, uma tentação, e por isso mesmo um perigo sempre à vista. Já por várias ocasiões chamámos a esses poetas ou romancistas "dramaturgos por acidente", pois, com raríssimas execepções (duas ou três, no máximo), podemos encontrar, em Portugal, autores que tenham cultivado simultaneamente e com igual maestria o poema, o romance e o drama. Porque ou se é verdadeiramente uma coisa ou outra. O teatro, sobretudo, exige um instinto que só a ele serve, uma intuição expectante das tensões e dos conflitos capaz de transferir ao diálogo a intensidade suficiente para mobilizar a totalidade do destinatário, leitor ou espectador. Assim com uma boa voz não se adquire, já se traz de nascença, assim só existem dramaturgos natos. E só se escreve teatro por irresistível vocação. O teatro português dos últimos trinta anos tem, felizmente, alguns destes dramaturgos natos, entre os quais não podemos deixar de mencionar, pelo menos, dois: Luiz Francisco Rebello e Bernardo Santareno.
Alguém aconselhou José Saramago, escritor inegavelmente bafejado pelo dom da narrativa (veja-se Manual de Pintura e Caligrafia, uma das mais significativas obras produzidas ultimamente em Portugal), alguém o aconselhou (ou o desafiou) a escrever uma peça de teatro. Vejamos o que aconteceu.
José Saramago escreveu uma peça que dividiu em dois actos. Primeiro erro. A divisão foi feita tão-somente para que não ficássemos diante de um acto muito longo, pois não há nada que separe estruturalmente as duas partes da peça, salvo o transistor reproduzindo a música "Grândola, Vila Morena", que foi, como se sabe, a senha de partida dada aos revolucionários de Abril. Assistimos, do princípio ao fim, à reconstituição do que se passa uma redacção de jornal, tipificada em pequenas intrigas internas, marcada, no caso, por divergências ideológicas. Não seria difícil pôr um rosto conhecido no director da província. Sob este aspecto, a peça ajuda a escrever a história do jornalismo (ou apenas das redacções dos jornais) antes da Revolução de 25 de Abril. A noite é realmente um episódio fictício, contudo provável, dessa história. Vale como documento.
Quanto à sequência dramática e ao conflito de raiz que reconheçamos, está presente na peça, faltam-lhe espessura e desenvolvimento progressivo. Tudo permanece ostensivamente parado. É certo que esta imobilidade, este nada acontecer do discurso dramático fazem parte da gramática da cena; reconhecemo-lo sem custo. O não dinamismo da acção constitui a sua dinâmica. Mas justamente a suspensão, a apatia propositada, deviam criar uma densidade mais incómoda, uma expectativa mais eficaz. O tédio da redacção pode transmitir-se ao espectador, pois o excesso desta função semiológica no palco tem muitas probabilidades de desvirtuar-se dentro do destinatário.
Todavia...
José Saramago é um criador de linguagem, porque sabe distribuir com mestria as tensões internas do discurso narrativo. Dessa arte, portanto, se valeu o estabelecer a linha de tensão dramática existente dentro da sua peça: os diálogos entre o chefe da redacção (Valadares) e o redactor da província (Torres). As falas destas duas personagens são filtradas na quantidade exactamente adequada do discurso teatral (teatral em todos os bons sentidos). O mérito da acção está, provavelmente, no jogo das palavras e das intenções destes dois protagonistas, que galhardamente carregam a peça do princípio ao fim. E que chegam para aliciar o leitor (ou o espectador).
Queremos acreditar que A Noite seja mais um justo tributo ao 25 de Abril. Não é, porém, uma produção que nos anime, por enquanto, a considerar o autor como dramaturgo nato. E pelo respeito que votamos a José Saramago, e à obra com que enriqueceu as letras portuguesas, não desejamos que seja um dramaturgo por acidente, e muito menos de ocasião.
[MENDONÇA, Fernando. Recensão crítica a A noite. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões críticas. n. 58, nov. 1980, p.85.]