A jangada de pedra, de José Saramago
por Maria Alzira Seixo
por Maria Alzira Seixo
A actividade de José Saramago como romancista tem vindo a orientar-se essencialmente em torno de quatro eixos fundamentais: uma questionação do contemporâneo em função de uma aprendizagem lúcida e crítica do passado; uma efabulação aparentada à dos cânones tradicionais mas que faz intervir, na dinâminca do mundo que o romance quase sempre representa, forças temáticas e situacionais ligadas ao maravilhos, ou mesmo, por vezes, ao fantástico; um discurso ficcional que, respeitando a sintaxe da lógica narrativa comum, altera no entando a sua expressão gráfica e pontual, fazendo emergir, no fluxo da comunicação romanesca, uma relação de quase simbiose entre o narrador e a matéria narrada, privilegiando, portanto, o discurso interior sob a aparência de um respeito primeiro pelo discurso da personagem, e implicando entre si os planos expressivos da fala, do pensamento e da escrita; uma temática essencial do homo viator, caminheiro das terras, dos ares, das memórias e das confabulações mais íntimas da sua imaginação. Este seu novo romance, A Jangada de Pedra, retoma estes vectores de tempo, sobrenatural, continuidade discursiva e temática da viagem, reorganizando-os numa proposta de sentido de teor mais fortemente alegórico, adquirindo o alcance de uma utopoia pela sanção moral e crítica que até certo ponto lhe atribui.
A Jangada de Pedra constrói-se sobre dois planos narrativos, como acontecera de modo visível em Memorial do Convento, e, de forma mais subtil em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Essa subtileza é aqui mais sabiamente prolongada, insinuando-se o plano do maravilhoso como integrativo e explicativo do plano natural, e percepcionado este em função de uma carga de insólito que radicalmente o altera. Por outras palavras, e de modo mais explícito: Joana Carda faz um risco no chão com uma vara, e ao mesmo tempo, sabe-se depois, abre-se uma brecha nos Pirinéus. Do mesmo modo, e em sítios diferentes, Joaquim Sassa, que passei por uma praia atirando pedras ao mar, atira uma rochar que só depois percebe não estar ao alcance das suas forças de arremesso; José Anaiço, sempre que se desloca, é seguido de um bando de estorninhos; e Pedro Orce, personagem que aqueles dois decidem procurar no sul da Espanha, sentiu um abalo de terra que então começou e não cessa. Os três homens regressam a Portugal (hospedam-se aliás no Hotel Bragança, autocitação de O Ano da Morte de Ricardo Reis que já integra em todo um sistema alusivo que convoca diversos pormenores dos seus anteriores romances) onde são procurados por Joana, que os conduz à Ereira, aí lhes mostrando o risco aberto pela vara que nada consegue apagar; é lá que surge um cão que, com um fio azul na boca, os guia de novo até Espanha, onde encontram Maria Guavaira, a última personagem do grupo. Entretanto, e em sugestões iniciais dispersas, já o narrador referira ao espanto dessa mulher que, nos campos da Galiza, desmanchando uma meia azul, vê o quarto encher-se de um novelo de lã desproporcionado em relação à peça que desfiou, assim como descrevera as angústias produzidas em torno do ladrar súbito do cães até então mudos, e de um em especial, sob o qual a terra se parte, separando abruptamente a Espanha da França, e que no último momento salta para a Península, ficando do lado de cá do abismo, e sendo justamente este que aparece a juntar-se ao grupo junto ao risco da vara. Há assim, de entrada, um conjunto de enigmas, espécies de questões que se colocam à esfinge do romance, e a que o romance não responde em definitivo, não se deixando destruir como ficção. No plano do maravilhoso se situa, deste modo, toda a intriga vivida por este grupo, que persegue os seus mistéiros, entrelaçando-os, como entrelaça os seus destinos: José apaixona-se por Joana, Maria por Joaquim, e Pedro arrima-se ao cão, o único que, como ele, sente a terra tremer. Empreendem então uma viagem de reconhecimento até à antiga fronteira, a verificarem o sítio onde se deu a ruptura da Península. Durante todo este tempo, entretanto, e alternadamente, foi-nos representado o mundo circundante: narração dos vários casos e brechas que surgiram nas montanhas, produção de ruptura total, desprendimento da Península em relação à Europa e sua navegação através do oceano. Esta narração tem pontos de clímax (ameaça de colisão com os Açores, mudança de rota e descida pelo Atlântico) e descrevem-se com pormenor, entre o sarcasmo e a ironia crítica, entre a censura e o tom puramente jocoso, as devidas reacções políticas (portuguesas, espanholas, europeias, mundiais), sociais (convulsões, atropelos, migrações, êxodos) e psicológicas (a central interrogação e perplexidade sobre a sem-razão do acontecimento).
Ora é justamente essa sem-razão que vem dar o sentido a este romance, sentido a um tempo poético, político e existencial. O sentido poético aponta para uma recriação do mundo e da vida; buscar-se o conhecimento, e para a ele chegar se atravessa o amor; e toda esta travessia tem o sentido de uma perigrinação, que não é sacrifical na gnosiológica, de sentido alusivo e labiríntico, e o que se encontra é uma responsabilização radical de ser com o outro, afastados os outros que estão fora do querer comum, criando um destino próprio e autêntico (no final da busca e do romance, todas as mulheres férteis da Ibéria estão grávidas e, tendo morrido Pedro Orce quando justamente a Península pára a meio do oceano, a vara de negrilho que Joana Carda espeta na sua sepultura reverdece e promete um futuro). A construção desse destino, que é antes mais obra de uma força cósmica, mas de que as personagens parecem dar-se conta ao longo do seu percurso, faz-se justamente através da viagem infinitamente desdobrada em espaços, meios e sujeitos (os habitantes/ o grupo/ o navegador solitário/ o Holandês Voador - referência mítica constante; o automóvel Dois Cavalos/ a "galera" puxada por dois cavalos/ o burro do andaluz incrédulo - contrapartida bufa da atitude de quase religiosidade do grupo; a Península feita ilha vogando pelo mar, qual jangada arrastando populações desprevenidas e temerosas/ os meios de transporte anteriormente referidos/ a barca de pedra encontrada na costa galega, figuração literal e emblemática do motivo do texto).
Esta formulação poética tem evidentemente uma intenção político-social, que é menos, quanto a nós, a sugestão de um iberismo histórico do que o apelo à aliança de interesses comuns e de busca de um sentido colectivo que vai afinal situar-se, quando a Península pára, entre a África e o Brasil. Evidencia-se aliás ferozmente a inanidade das tutelas governamentais e a hipocrisia dos sistemas políticos em relação ao efectivo bem-estar do cidadão comum; e é nessa medida que o romance de Saramago, sendo a fábula de grupo, vem fundar o seu sucesso no encontro individual de cada um consigo mesmo, com o seu jeito e com o seu gesto, se bem que para isso tenha de atravessar a ponte que de si o desvia, fazendo-o passar pelo outro que lhe dá razão de ser, que é, em última análise, a da terra que o suporta (terra-pedra que é arrimo, material e apelo do toque para toda a agressão, defesa ou impulso de criação para o sentido que dela se pode desprender). Por isso, talvez, Pedro Orce morre, o coração solitário que Joana e Maria atraem para si, mas que as nega, sem luta, assim como nega a hipótese do filho, que elas eventualmente conceberam dele, e ele não chega a conhecer - ficando-se pela ternura da terra e pelos passeios ignotos que nem o narrador desvenda; assim como morre, também, e de maneira mais socialmente cruel, o solitário navegador. O cão, esse também se vai, era um instrumento do destino agora realizado, perde de futuro pertinência a sua conotação mitológica (vinha da aldeia de Cerbère). Ficam os casais, e as crianças por nascer. Com eles fica a aprendizagem de um sobrenatural que faz parte intrínseca da natureza, da capacidade de decisão e de responsabilidade que pode levar o homem a fazer face ao destino; da força dos afectos; da importância de integrar o imaginário na racionalização do viver. Fica uma noção de tempo que é puro discurso e visível deslocação de um espaço arrancado, levado e detido, insustentável casa, ou leito, ou barco que na suspensão do seu trânsito encontra a espessura do momento que se conta e, com ele, o nascer da história.
Depois de Memorial do Convento e da sua radical inovação no tratamento do passado e no trabalho da linguagem A Jangada de Pedra é decerto o romance de José Saramago que de modo mais feliz desenvolve a magia fabular do entrecruzar dos destinos e da sua tutela mítica inoperante sem um chão que de sob nossos pés se levante firme.
texto publicado na Revista Colóquio/Letras, n. 99, set-out. 1987, p.97-99